Enganámo-nos, por exemplo, nas seguintes:
A Mulher a Dias Tradicional
Situação: Ao fim de uns meses a jurar que conseguíamos fazer tudo sozinhas, era o que faltava, naquela casa nunca entraria mão alheia, ao fim de sonharmos anos e anos que, no dia em que tivéssemos casa nova, ela ia cheirar a cera e a maçãs, a realidade cai-nos em cima com todo o seu peso de realidade (costuma ser muito). Não só não conseguimos fazer tudo sozinhas, como a casa, se cheira a alguma coisa, é aos ténis do Paulinho e a porcaria entranhada, nada que lembre remotamente cera ou maçãs.
Sonho: Ao fim de muitas investigações, decidimos contratar a Odete. A Odete é a mulher da nossa vida. A Odete tem a cara e o aspecto que tinham todas as empregadas dos filmes, e só não anda fardada porque, enfim, já era um bocadinho de mais. Mas quando chega a casa e vê a roupa lavada, tem vontade de beijar a Odete na boca.
Realidade: Ao fim de uns dias, a roupa demora um bocado mais a ser lavada. Há bolinhas de cotão por todos os cantos. A Odete deu em fiscalizar a sua vida e torce os cantos da boca de cada vez que você lhe diz ‘ó D. Odete, por favor não me arrume as revistas que eu gosto de as ter espalhadas’. No dia seguinte, as revistas estão outra vez empilhadinhas e você já não sabe onde tem nada. A Odete queima-lhe equipamentos de ginástica à velocidade da luz, porque ainda não percebeu que há certas coisas que não gostam de ferro. A Odete acha que você é uma galdéria que não sabe o que a vida custa a ganhar e de certeza que lhe roga pragas pelas costas e põe sal atrás das portas.
A Vizinha Simpática
Situação: Você acaba de se mudar para um prédio novo onde não conhece ninguém. Não sabe a que porta bater se o telemóvel pifar, o cão tiver um ataque de histeria ou entrar uma barata pelo cano do lava-loiças. Sente-se uma alma desamparada num caixote com muitas gavetas, e amaldiçoa o dia em que decidiu divorciar-se (do marido, do namorado ou dos pais).
Sonho: Nos filmes há sempre um vizinho louro e simpático e incompreensivelmente solteiro, apesar de ser louro, simpático e com casa própria. A malta vai-lhe bater à porta porque precisa de um ovo e no episódio seguinte já estão enroladinhos à lareira a escolher o nome dos filhos.
Realidade: Ao fim de um tempo, faz finalmente amizade com a D. Albertina, do 5.º esquerdo. Desvantagem: a D. Albertina é como os rotweillers, quando ferra não larga. A D. Albertina faz-lhe esperas para lhe contar a sua vidinha de uma ponta à outra, do filho que casou e foi para a Suíça e a partir daí nunca mais ninguém o viu, até ao primo Anacleto que era tão bom rapazinho e coleccionava escaravelhos e, veja lá, deu em drogado, ‘então, e a menina, tem namorado? Ah não? Porquê? Olhe que essas coisas não se podem arrastar, olhe depois chega aos 40 (ou 50, ou 85) e não encontra homem que a queira’. Ainda por cima, arrasta cómodas corredor fora até às 4h da manhã (deve ser promessa, porque ninguém tem assim tanta cómoda para arrastar) ou depois ouve o Frei Hermano da Câmara até às 6h no volume máximo, porque tem insónias e é surda.
A Companheira de Viagem
Situação: De repente, apeteceu-lhe tirar uns dias só para si. Uns dias para ir a algum sítio onde a mão do Homem nunca pôs o pé. Ou, enfim, a qualquer sítio mais exótico que Cascais. Problema: detesta viajar sozinha, e o seu Paulinho avisou logo que nos meses mais próximos não podia tirar dias nenhuns porque o chefe andava maldisposto e, quando o chefe anda maldisposto, não se lhe pode pedir nem um pacote de açúcar, quanto mais dias.
Sonho: Decide investigar qual das suas amigas terá um chefe mais bem-
-disposto que a deixe tirar uns dias para viajar a algum sítio mais exótico que Cascais. Encontra a Joaninha, que é um amor de pessoa e sempre teve o sonho de ir a Pequim.
Realidade: Percebe imediatamente que a Joaninha não tem a noção de onde fica Pequim. Mal o avião tirou as patas do solo e já ela refila que tem pavor de aviões e que um ministro famoso morreu de tromboflebite numa viagem a não sei onde. Depois quer sempre ir à janela. Protesta que a comida nos aviões é de plástico. Chateia a hospedeira porque precisa de uma manta, depois porque a manta tem muito pêlo e depois porque afinal não quer a manta que deve estar atochadinha de ácaros. Quando chegam, fica de trombas porque está a chover, depois porque na China só falam chinês, são uns ignorantes e uns bárbaros e nada como no ‘Lost in Translation’ (“Mas isso era no Japão”, diz você debilmente), depois porque o hotel não é nada como nos folhetos, depois porque o guia cheira mal dos pés, os nativos são todos iguais, e a comida não é nada como no Dragão do Oriente lá ao pé de casa dela. Quando a viagem chega ao fim, toda a gente jura que nunca irá mais longe que Cascais. Ou, pelo menos, na companhia da Joaninha.
A Instrutora Loura
Situação: Decide finalmente que desta é que é: vai perder aqueles quilos que a impedem de ser a Gisele Bündchen e vai descobrir finalmente onde é que ficam os trícepes. Enche-se de coragem e inscreve-se num ginásio. Compra um top que lhe deixa o umbigo à mostra, uns ténis daqueles com molas no calcanhar e apresenta-se assim fardadinha no primeiro dia de aulas, com a vaga sensação de não ter estudado a lição.
Sonho: Quando bota os olhos na instrutora, fica mais descansada. A rapariga deve ter metade da idade da sua filha, está vestida de cor-de-rosa dos pés à cabeça como uma bailarina de caixa de música, e também tem ténis com molas nos calcanhares, o que a deixa mais calma. Podia ir numa procissão mascarada de anjinho.
Realidade: O Anjinho avisa logo que não está ali para brincadeiras e quem quiser uma cena calminha pode iniciar-se no arraiolos. Parece que baixou um Espírito do Mal que a leva a dizer as coisas mais anticondizentes com alguém vestido de cor-de-rosa. Os outros têm todos cara de quem nunca fez arraiolos na vida, nem ponto-cruz, nem macramé, nem qualquer outra ‘cena’ prò sossegado. O Anjinho já ligou a turbina, e o resto da turma tem um ar feroz como se fosse para o Iraque depois de amanhã. Dez minutos depois, você parece uma torneira humana. Pouco falta para malhar com as ossadas no tabuado. Só se lembra da Luísa Castel-Branco a dizer ‘você é o elo mais fraco, adeus’. Ai que saudades! Ninguém aqui devia ser nascido nessa altura. No dia seguinte, são precisas quatro tentativas para sair da cama. Doem-lhe todos os músculos, inclusive músculos que não sabia que tinha. Continua a não saber qual deles é o tal trícepes, mas de certeza que também lhe dói.