*artigo publicado originalmente em fevereiro de 2018
Psiquiatra, ‘guru’ e o autor mais lido (e mais simpático) do Brasil, ficou famoso pelas suas teorias do pensamento, e também por frases bombásticas como ‘Não queiram ser a pessoa mais rica do cemitério’. Em Lisboa, explicou-nos o que são janelas assassinas, como mudar a nossa vida em 5 segundos e de que maneira podemos ser autores da nossa própria história.
Podemos começar por uma das suas teorias mais famosas: como é que somos dominados pela nossa memória?
Você já escreveu a sua biografia? Toda a gente diz que não, mas já, porque todos nós temos no nosso cérebro um biógrafo não autorizado, o fenómeno RAM: registo automático de memória. O que é que acontece: de noite, arquivamos pensamentos racionais e estúpidos, emoções tensas e calmas. Tudo o que pensamos lá fica. E ele regista sem pedir licença à nossa consciência crítica. O que acontece: tudo o que nós detestamos é registado de forma mais privilegiada, mais vincada. Porque o volume de tensão – rejeição, magia, raiva, ciúmes – marca uma memória mais profunda. E isto gera aquilo a que chamamos ‘Janelas Killer’, ou janelas assassinas, que vão dominar a forma como pensamos no dia a dia.
Que podemos fazer para nos defendermos do inconsciente?
Nós podemos, nos primeiros 5 segundos de uma emoção, enfrentar, impugnar e reciclar cada registo doentio, cada sentimento de autopunição, de raiva, de ódio. Para tomar banho temos 24 horas, para a higiene mental só temos 5 segundos.
Dê-me um exemplo…
Se me dão uma tarefa e o meu pensamento imediato é ‘Não vou ser capaz’, se entro numa sala cheia de gente e penso ‘Não vão gostar de mim’, no exato momento em que penso isso, no silêncio da minha mente, o meu ‘eu’ tem de impugnar esse pensamento. Porque no futuro, em situações semelhantes, o cérebro vai recorrer a essas ‘janelas killer’ que vão desertificando a nossa personalidade. Se uma mulher se olhar ao espelho e vir um defeito, o cérebro vai registar esse momento. E cada vez que ela olhar no espelho, ela vai ver esse defeito.
Todos nós temos uma cidade da memória, milhares de vezes mais complexa que Lisboa. É como se ficássemos presos em moradas que nos perturbam: uma esquina cheia de lixo, um prédio a cair, uma rua sombria.
Temos de criar mais áreas de jardins?
Por um lado criar mais áreas de jardim, por outro torná-las mais acessíveis. Porque é que há tanta depressão atualmente? Porque as pessoas ficam chafurdando na lama da autopunição, da insegurança, a pensar que não somos queridos, que não somos capazes. Tudo isso nos auto-sabota, e retroalimenta a sua própria tristeza.
O medo estraga-nos a vida?
Sim. O pensamento consciente é virtual, não incorpora a realidade do objeto pensado. Por exemplo: o futuro é uma possibilidade e não uma realidade. Mas nós sofremos pelo futuro porque a emoção é real, a emoção banca o virtual, banca o medo, banca a ameaça. Então ela é uma péssima consumidora. Não lhe podemos dar cartão de crédito: uma ofensa estraga o dia, uma rejeição estraga uma semana, uma crítica estraga uma vida.
É possível lutar contra isso?
Claro que sim. Aprender a gerir as emoções significa darmos ao ‘eu’ poder. Não apaga os traumas, isso é impossível, mas pode reeditá-los fazendo higiene mental.
Como é que isso se faz?
Uma das principais técnicas, associada à compreensão do funcionamento do cérebro, é a sigla DCD: Duvidar, Criticar e Determinar. Se eu duvido de que não consigo ser feliz, se eu critico cada ideia perturbadora, as ideias determinantes, se dialogo mais, se troco experiências, essa técnica vai muscular o nosso cérebro e reduzir o poder das ‘janelas killer’ que sabotam a nossa autoestima.
Isso não exige muita disciplina mental?
Exige e não é um milagre, podemos recair, é normalíssimo. Mas se conseguirmos reeditar algumas ‘janelas’, isso é fantástico. Ganhar uma batalha não é ganhar a guerra, mas é mesmo assim ganhar uma batalha. Só nos vai dar ânimo para ganhar mais.
É mais difícil para a mulher ser autora da própria história?
Sem dúvida. A maior conspiração deste século é a ditadura contra as mulheres. Elas têm mais transtornos psíquicos, não porque sejam o sexo fraco: são mais inteligentes, altruístas e solidárias. Mas são constantemente bombardeadas por um padrão tirânico de beleza como nunca houve na História. O ideal magérrimo e doente é utilizado pela sociedade de consumo para vender tudo e mais alguma coisa. E o nosso ‘biógrafo’ interior não perdoa. Quando ele vê um anúncio de um perfume, não entra na ‘janela’ apenas o perfume, mas esse ideal assassino de beleza. E isso é feito às claras. Estamos a destruir a vida das mulheres, que vivem sequestradas por dentro. E toda a gente acha isso normal!
Isso interessa a quem?
Interessa ao sistema capitalista que estejamos sempre prontos a comprar qualquer coisa. As mulheres são as mais pressionadas a consumir desnecessariamente para compensar a ansiedade, quando o segredo de uma emoção feliz é fazer muito do pouco. A emoção não respeita o dinheiro que você tem mas o que você sente por você mesma.
Também diz que exigimos aos outros o que nós não temos…
Sabe o que é curioso? Não temos o poder de melhorar ninguém, mas temos o poder de piorar, se criticarmos, se nos zangarmos. Se eu criticar a minha mulher, ela vai fixar o meu tom de voz, a minha censura, e isso vai torná-la pior, mais amarga. Por isso não devemos ralhar, há que pensar antes de agir. E temos de ser simpáticos, empáticos e carismáticos.
Uma pessoa simpática é bem humorada, o carismático elogia quem ama e o empático surpreende. Ele diz ao filho que erra: ‘Gosto muito de ti, mas pensa no teu comportamento’. Portanto, ele não parte logo para a guerra abrindo a ‘janela killer’, ele elogia, abre os braços, e depois pede uma solução.
Diz que estamos numa sociedade de entretenimento mas continuamos sós…
A sociedade do lazer criou a geração mais triste que pisou nesta Terra. O suicídio aumentou em 40% mundialmente entre os jovens. E não é só a Baleia Azul. O excesso de informação e de compromissos levou ao assassinato da infância. Os mais novos precisam de cada vez mais para sentir cada vez menos, e estamos a aumentar o seu nível de exigência para serem felizes. Estamos a gerar mendigos emocionais. Os pais têm de falar das suas lágrimas para que os filhos possam chorar as deles, têm de falar dos seus fracassos para que os filhos entendam que não têm de ser super nada, têm de levá-los a contemplar o belo, a destinos tranquilos e serenos que formem ‘janelas light’. O ecrã não pode ser toda a vida deles. E não olhem para as notas…
Controlava isso com as suas filhas?
Claro. Tenho três, a mais nova com 23 anos, e eu controlava até a televisão. Eu nunca as ajudei nos TPCs: responsabilizava-as. Temos de ensiná-los a pensar a longo prazo, a ter capacidade de reagir, de sonhar, de se auto-regular, de trabalhar as frustrações, de se colocar no lugar do outro. E tudo isto na infância, até que você não precisa mais vigiá-los. Queremos trazer para Portugal a Escola da Inteligência, um programa que através de histórias e metáforas vai às escolas ensinar as crianças a protegerem as suas emoções. Não é a quantidade de informação que determina a qualidade de um pensador. Estamos formando repetidores de dados e não pensadores, e precisamos de diminuir a avalanche de informações para formar a consciência crítica e o pensamento criativo das crianças.
Como proteger os mais pequenos?
A partir de dentro: se a sociedade me abandona, eu sobrevivo. Mas se eu me abandonar, eu não sobrevivo. A emoção não pode tornar-se hipersensível, temos de proteger a nossa autoestima e mudar a maneira como contamos a nossa própria história. Hoje é possível reinventar um ser humano, reurbanizar a sua memória consciente e emergente.
Quem foi o homem mais inteligente do mundo?
‘O homem mais inteligente da história’ (Ed. Pergaminho) é a jornada de um cientista em torno da mente de Jesus: “Quando comecei a estudar Jesus, fiquei pasmado. Ele tinha todos os motivos para estar deprimido. Mas nunca se viu alguém tão feliz e motivado. O engraçado é que ele é o homem mais famoso da História mas o menos conhecido em termos do que nos ensinou emocionalmente. Uma das coisas que me fascinou foi a sua capacidade de comunicar a sua dor. Ensinou-nos não a ser heróis mas a sermos transparentes, a não termos medo das nossas emoções.”
Augusto Cury em 10 segundos
Psiquiatra e escritor, é o autor mais lido no Brasil dos últimos anos. Formado em medicina e doutorado em administração, cedo percebeu que havia um enorme campo a desbravar na área da emoção. Criador do conceito de inteligência multifocal, que estuda a forma como consciente e inconsciente se ligam, também desenvolveu o projeto Escola da Inteligência, para ensinar as crianças a protegerem as suas emoções.