Está quase a fazer 40 anos de carreira mas prefere pensar que os marcos que se celebram são os discos que se fazem e a obra que se realiza – para os números redondos há tempo, depois.
‘Tratamento Acústico’ foi gravado no Grande Auditório do CCB e Represas não quis repetir nele o formato de outros discos ao vivo. Com Cícero Lee no contrabaixo e Carlos Garcia ao piano, os êxitos que lhe conhecemos de sempre e as canções mais recentes do álbum de 2014, ‘Cores’, ganham nova dimensão musical. O álbum, lançado pela Universal em formato de duplo CD + DVD, conta ainda com as participações especiais do cantor moçambicano Stewart Sukuma e do fadista Ricardo Ribeiro.
De onde partiu a ideia para um formato acústico diferente do habitual, neste disco?
Foi um bocado em contraponto ao que tenho a vindo a fazer. Cada vez que faço um disco de originais, concebo um concerto a partir dele – neste caso, o ‘Cores’ – no qual tentaria replicar o mais possível, em cima do palco, os arranjos e instrumentalização com que o disco tinha sido gravado. Desta vez, tentei fazer exactamente o contrário. Tentei fazer com que as canções valessem muito mais por elas próprias e que fossem sustentadas pela sonoridade muito especial de um piano acústico e contrabaixo, a que se juntam a guitarra e as vozes. Isso fez com que nós nos surpreendêssemos muito com algumas canções – além das novas, algumas mais antigas. Aqui, o espaço abre-se muito mais em termos interpretativos e de execução, tantos dos músicos (o Cícero Lee no contrabaixo, o Carlos Garcia no piano e eu próprio) e isso traz uma outra exigência, cuidado e delicadeza na forma de se interpretarem as canções.
Porquê a escolha do Stewart Sukuma e do Ricardo Ribeiro para seus convidados?
A escolha do Stewart veio porque já tínhamos tocado juntos em concertos meus e dele, em Portugal e Moçambique. Queria muito trazê-lo para um concerto meu mas mostrá-lo num outro registo, porque achei que seria uma forma de as pessoas o conhecerem melhor. Temos uma relação antiga e somos muito amigos. Por outro lado, nunca tinha cantado com o Ricardo Ribeiro em espectáculos. Já nos tínhamos encontrado em festas de amigos e trauteado algumas coisas juntos e eu queria muito trazê-lo para cima de palco comigo porque senti nele uma energia muito forte que gostaria de partilhar e com a qual gostaria de conviver. Ele não é somente um fadista, é um cantor com uma amplitude muito maior.
Diz logo no início do espetáculo que tinha músicas “escondidas e esquecidas a um canto” e que um amigo o convenceu a “tirar-lhes o pó”. Quais foram?
‘No escuro’, que é do álbum ‘A Hora do Lobo’ (1998); o ‘Ausência e Tu’, uma canção de 1995, do álbum ‘Cumplicidades’. Estavam fora de repertório há bastante tempo. Mas o facto de serem só duas canções representa bastante porque temos um espetáculo em que é preciso partilhar muito. Tenho esse desejo de recuperar canções. Haveria muitas mais para recuperar mas, em termos de alinhamento, seria impossível.
E por falar em alinhamento… há êxitos incontornáveis que têm mesmo que fazer parte de um espectáculo? Não se faz um concerto do Luís Represas sem o ‘125 Azul’ e o ‘Perdidamente’?
Tinha pouca margem: tenho as canções novas, aquelas que não canto habitualmente, as dos convidados e, de repente, tinha muito pouco espaço para os êxitos. Até por uma questão de respeito para com o público – quando vou ver um concerto de um artista de que gosto, também quero ouvir aquelas 3 ou 4 canções que acho fundamentais – e se eu não as puser no espetáculo, acho que o público sentiria que faltava ali qualquer coisa. O ‘125 Azul’, o ‘Perdidamente’, a ‘Feiticeira’… Poderia não ter posto as ‘As Memórias de um Beijo’ e ter optado por outra mas, mesmo assim no final do espetáculo as pessoas dizem-me que faltou isto e isto e mais isto. Era uma questão de gestão de espaço.
Em 2016 cumprem-se os seus 40 anos de carreira. Já tem planos para marcar a data, musicalmente?
Não. Acho que as datas se celebram mais por aquilo que se faz. Lancei agora um disco e toda a gente me fala dos 40 anos de carreira. Agora estamos nos 39 mas estamos a celebrar um disco que para mim é muitíssimo importante. Os marcos são importantes e engraçados mas o fundamental é o trabalho que se vai desenvolvendo e o empenho. Se para o ano não tiver nada tiver cá fora, farei os 40 anos, de facto, mas será um marco a assinalar de outra forma qualquer.
O recorda mais desta noite especial do CCB, em termos de interação com o público?
Curiosamente, uma coisa especial para mim num espetáculo deste tipo é conseguir-se escutar o silêncio do público. Claro que é muito bom quando o público canta as músicas connosco, mas esse silêncio traduz uma disponibilidade e entrega àquilo que estou a fazer e isso é uma das coisas que mais me fica na memória e me cala mais fundo. Quando se está num formato acústico deste tipo, que ainda por cima é muito ‘nu’, o silêncio sente-se como uma brisa e obriga-me ainda mais a ir atrás das palavras que estou a dizer, da forma como estou a cantar. É meticuloso, é como uma filigrana delicada.
Quais são os seus álbuns acústicos preferidos, gravados ao vivo?
Há um álbum notável do Lluís Lhacc, um cantor catalão que, há muitos anos, gravou um álbum ao vivo num estádio de futebol com cerca de 50 mil pessoas e faz o espetáculo sozinho, ao piano. Isso prova que o formato do espetáculo não é dependente da dimensão do público. Por outro lado, o álbum ‘Shadows and Light’, da Joni Mitchell, em que ela é acompanhada ao vivo por um leque absolutamente notável de músicos, todos eles com uma personalidade extremamente vincada e assumida, como é o caso do Pat Metheny ou do Jaco Pastorius. Todos eles são solistas, mas ali estão a tocar para ela, as canções dela, a levarem-na em braços mas assumindo vincadamente a personalidade de cada um sem se descaracterizarem enquanto músicos.
Recebeu recentemente o prémio ‘Voz Montepio’. Como é que trata da sua?
Não sou um asceta. Sou um músico popular. Provavelmente os cantores líricos terão uma série de cuidados (o Pavarotti fumava charuto tranquilamente; isso depende do instrumento e da cabeça de cada um). Mas acho que estes rituais, os tratamentos que se fazem e que têm muito mais um efeito placebo do que outra coisa, têm mais a ver com a característica emocional do cantor, porque uma das coisas a que a voz reage mais é ao lado emocional. O que é universal para todos é dormir bem e o silêncio. Afinal, estamos a falar de um exercício físico; é como se fossemos atletas de alta competição. Mas nós, cá, ainda estamos muito longe de fazer o que é necessário, sobretudo na música popular: os devidos aquecimentos da voz antes de cantar e os arrefecimentos, depois. Muitas vezes porque não os sabemos fazer, outras porque não temos condições de recinto para isso – não podemos fazer aquecimentos e vocalizos como se devem fazer, em camarins, em cima de palco… ou quando não há sequer camarins. Muitas vezes cantamos em situações complicadas, com pó, humidade, frio. Por isso, nós, músicos populares, somos mais ‘carros de assalto’ que se tratam como podem. O que é fundamental é sentirmo-nos felizes e saudáveis. O resto é meio caminho andado.
*Veja o vídeo de ‘Memórias de um Beijo’, um dos momentos do espectáculo ‘Tratamento Acústico’.