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Era a penúltima segunda-feira de novembro, dia de brincar na Unidade de Longa Duração e Manutenção de Ferreira do Alentejo. A meio de um renhido campeonato, aviõezinhos de papel riscavam o ar da sala comum em voos coloridos. Mas este não é um espaço dedicado a miúdos da escola primária. É uma unidade de cuidados continuados e também paliativos. A maior parte dos 24 utentes que ali estão internados são idosos com doenças crónicas, limitações físicas, dependentes do cuidado de terceiros; alguns estão mesmo em fase de vida terminal. Mas nesse momento riam. Os seus seis ou sete anos já lá vão há muitas décadas mas nesse dia foi como se viajassem na máquina do tempo e as dores não os prendessem às cadeiras de rodas, às camas articuladas, às tomas regulares de medicação. Esta é uma sessão do PlayMonday, o dia de brincadeira instituído para os utentes daquela unidade. A coordenar as operações do espaço aéreo, uma enfermeira, uma psicóloga, uma terapeuta ocupacional e uma animadora sociocultural.
Inês Banza, enfermeira, 29 anos, trabalha ali há 5. Em agosto de 2015 conheceu o movimento PlayMonday através das redes sociais, um projeto que a cativou de imediato e que achou que tinha mesmo de pôr em prática na Unidade de Longa Duração e Manutenção de Ferreira do Alentejo.

“O bom da brincadeira é que não tem de dar certo”
A ideia do PlayMonday é simples: como o nome em inglês indica, consiste em aproveitar a segunda-feira, o dia tradicionalmente considerado mais stressante e chato, para tirar nem que seja 5 minutos e brincar a sério. A idade não interessa e a maioria dos que aderem são adultos. O brasileiro Cláudio Thebas, 51 anos, um dos mentores do conceito, explica-nos por videoconferência: “Sou palhaço há 20 anos e nunca me imaginei a fazê-lo em teatro. A minha ação sempre foi na rua, na relação com as pessoas, procurando afetar e ser afetado pelo outro, no caminho dele na rua. Surpreendo-o com uma brincadeira e nela vivermos, juntos, um instante de humanidade. Estamos viciados na pressa, no chegar; nem vivemos o caminho.” Mais do que palhaço, Cláudio, que também é escritor, dramaturgo, educador, e trabalha com crianças em idade escolar, poderia ser chamado ‘brincólogo’, um especialista na arte da diversão. Sabe que pode não conseguir mudar o mundo, mas consegue transformar instantes através da brincadeira. “E se muita gente aderir a ela também, já estaremos causando algum impacto positivo no mundo. É quando brinco de verdade que comunico com aquilo que tenho de melhor. Quando duas pessoas brincam, acabam por oferecer o melhor de uma à outra.”
Há três e meio juntou-se a Daniel Nascimento, ator brasileiro que também integra o grupo de teatro de improviso ‘Barbixas’, e começaram a planear as primeiras brincadeiras públicas, gravadas em vídeo e depois partilhadas na Internet. Em agosto de 2015 lançaram o PlayMonday. Já há cerca de 70 vídeos publicados por pessoas em mais de 20 cidades e seis países – Brasil, Portugal, Canadá, EUA, Dinamarca, Itália. “Criámos um projeto; eu quis que deixasse de ser meu e passasse a ser de toda a gente.”
Alguns vídeos correram mundo, como aquele em que Cláudio vai para o meio da Avenida Paulista, uma das artérias mais agitadas do globo, desafiar os desconhecidos a pisarem apenas nos quadrados brancos da sua Ludovia, um caminho especial traçado na calçada. Jovens, velhos, mulheres e homens aceitam o desafio e saem com um sorriso na cara. No final, até um cego brinca, ajudado por Cláudio. “O boca-a-boca e a simplicidade do projeto fizeram por espalhar a mensagem do PlayMonday”, diz-nos. “Só é preciso brincar, gravar e publicar, não há que entender muita coisa. Sei que no mesmo dia há mais gente a brincar como eu e sinto-me pertencente a uma causa maior. O bom da brincadeira é que não tem o compromisso de dar certo; não brincamos pensando numa meta.”
A condição social ou profissão também não interessam: há fãs do movimento entre executivos de grandes empresas que levam o conceito para as salas de reunião, professores que juntam colegas e alunos na brincadeira, profissionais de saúde, como Inês. Uma das pessoas que se associou ao movimento vive na Dinamarca, onde trabalha com crianças e refugiados.

Nem só com comprimidos se alivia a dor
Foi por altura da Ludovia que Inês conheceu o projeto e o transportou para os doentes alentejanos. Falou com Cláudio, que lhe sugeriu que criasse um blog para relatar as suas experiências. Assim nasceu o PlayMonday – Care and Fun. “Em meio hospital é muito difícil brincar, sobretudo quando a saúde nos falha e somos obrigados a depender de outras pessoas para as nossas atividades diárias mais básicas”, explica-nos a enfermeira. “Sabia que também poderia ser complicado por causa das alterações motoras, da apatia e da depressão, das dores crónicas que condicio-
nam os movimentos de quem está internado. Mas achei que poderia ser uma boa desculpa para alterar a rotina e que projetos como este fazem todo o sentido em unidades como aquela em que trabalho. Podem até ficar acima das soluções farmacológicas. Quando os doentes estão distraí-
dos a brincar, as dores acabam por atenuar um bocado, pelo que tenho observado. Nem só de medicação se faz o alívio da dor.” Até porque, quando nos divertimos, a nossa química cerebral também ajuda, libertando substâncias que contribuem para o bem-estar físico e aliviar a dor, como as endorfinas. Ou como explicou a psicóloga de serviço, Raquel, “brincar ativa as conexões cerebrais, promovendo bem-estar emocional e psicológico, com alívio ou diminuição dos sintomas depressivos.”
A coordenadora e diretora da unidade de Inês adoraram a ideia e apoiaram o projeto de dar uma segunda-feira diferente por mês aos utentes. As brincadeiras nunca são muito complicadas, até porque a ideia é que ninguém fique de fora, adaptar o brincar à condição do paciente, mesmo que acamado. Fez a primeira experiência num turno da noite, com dois doentes acamados a sofrerem de insónias. “Lembrei-me da 2.ª regra do PlayMonday: não se trata de fazer algo por alguém, é fazer algo ‘com’ alguém. Enchi de ar uma luva de látex e fizemos o jogo da mão-balão.” Não durou mais de 5 minutos e foi feito com uma utente de 87 anos com o lado direito do corpo paralisado devido a um AVC. Mas isso não impediu que a diversão cumprisse o seu papel. Foi a doente que ditou as regras. “A primeira rea-
ção dela foi: ‘estou na cama, você de pé. Não vale mexer as pernas, só vale usar um braço’. Muito justo, pensei. Fiquei parada e com o braço direito atrás dascostas. ‘Acho que vou ganhar o jogo… Hoje vou dormir com a minha mão-balão’.” A seguir, com outro utente, apareceu o ‘jogo do copo equilibrista das quatro da manhã’. Ele numa cama, Inês na cama ao lado, ambos a tentarem equilibrar os copinhos de plástico da medicação na ponta do nariz. “Os jogos acabaram por ajudar a eliminar a insónia, que é uma consequência da ansiedade e do desconforto dos doentes durante o internamento. Tentei improvisar e usar o material que tinha à mão. Quis ver como é que os utentes, enquanto adultos, reagiam a uma brincadeira simples. Como vi que correu bem, com ajuda das minhas colegas organizámos um PlayMonday com um jogo de bowling.”
Até aqueles que não parecem muito convencidos a princípio, se rendem. “Uma das nossas utentes não gostava muito de participar nestas atividades, há sempre a ideia de que o doente não deve brincar, ou o argumento ‘estou cheia de dores, não me posso meter nisso’. Mas quando começou a ver os outros utentes a jogar, quis experimentar e, no fim, já não falava das dores. Um dos utentes até nos diz ‘pelo menos, distraio-me durante este tempo. Eu sei que elas estão cá mas alivia-me e não penso nelas’. Tem sido tão bem-sucedido que agora já nos perguntam quando é a próxima ‘brincadeira que tem um nome estrangeiro’.”

Brincar às escondidas com a morte
Pelo meio, Inês Banza vai partilhando os tais “instantes de humanidade” de que Cláudio fala, mas que às vezes lhe deixam um nó na garganta. “Perguntei a uma das pacientes com quem gostaria de brincar. ‘Com a morte: brinco com ela e ela brinca comigo, todos os dias’. Brinca quando tenta escapar-lhe e a morte brinca com ela quando lhe bate à porta.” De outra vez, estava a jogar ‘ao sério’ com um utente e pôs um nariz de palhaço em si e outro nele. “Começou a chorar e pensei ‘ai, o que é que eu fiz? Se calhar ultrapassei algum limite.’ Respondeu: ‘Antes, o tempo não me chegava para nada, nem para estar com a família, muito menos para brincar – só para trabalhar. Agora que estou preso a uma cama tenho tempo de sobra e passo-o a olhar para o vazio.’ Disse que se emocionou porque não pensava voltar a brincar mais e naquele dia estava a fazê-lo. Quando nos dão estas respostas, sabemos que tocámos no ponto essencial. Mas depois vamos a pensar nisto para casa.”
Apesar do objetivo principal, os jogos do PlayMonday também servem um propósito clínico. “A psicóloga avalia a parte cognitiva e comportamental; a terapeuta ocupacional avalia a parte motora e de coordenação; a animadora sociocultural vê a interação entre todos, a interajuda, o bem-estar dos utentes consigo próprios”, explica Inês. Ela avalia o efeito analgésico da brincadeira.
Inês quer incentivar outros enfermeiros a levarem o projeto para hospitais, centros de saúde ou lares. Mas sabe bem que a falta de tempo e o excesso de trabalho que assombram os profissionais de saúde não lhes dá muita margem de manobra para isso. “Pode ser difícil incluí-lo no plano de atividades das unidades em que trabalham. Mas acho que basta fazer uma vez e perceber como os resultados são bons. Estou sempre à pesca de novos ‘brincantes’. Para já, sou só eu que escrevo no blog mas gostaria que mais pessoas contribuíssem com o relato das suas experiências. Também desafiamos os familiares. Num dos dias de PlayMonday foram chegando visitas – a filha e a neta de um utente e o marido de outra – e juntaram-se à brincadeira. A hora da visita ficou mais leve e correu melhor. Retirá-los do contexto e conversa habitual traz os familiares para situações mais positivas. Se calhar aquele senhor já não brincava com a filha adulta há muitos anos…”

Executivos a jogar à macaca
Será que não desaprendemos de brincar quando crescemos? Ou é como andar de bicicleta? “Sempre que sufocamos a nossa criança interior, estamos a sufocar também a nossa capacidade de criar o mundo que queremos. Algumas pessoas olham as brincadeiras acontecendo na rua e ficam com muita vontade de participar, mas têm medo. Mas é um pouco como andar de bicicleta, sim: quando revivemos a sensação, é como se se abrisse um portal para libertar um monte de coisas dentro de nós”, observa Cláudio. “Uma vez, brincámos de amarelinha [jogo da macaca] na Av. Paulista e passaram dois executivos. Olharam aquilo, loucos de vontade de pular mas afastaram-se como se pensassem ‘a minha condição não me permite’”, conta Cláudio. Mas há cada vez mais altos quadros a perceber que a brincadeira ajuda nos negócios, confirma. “Percebem que sem ela as empresas tornam-se muito menos produtivas. Brincar permite-nos fazer as coisas com mais prazer, que a gente se abra ao que é novo e criativo. Hoje, sinto-me quase subversivo quando fazemos trabalhos em empresas e pomos os altos executivos a brincar como crianças”, ri.
Cláudio já pensa em novos desafios para o PlayMonday. Gostaria de ver um campeonato nas escolas, para que jovens e professores possam espalhar a iniciativa pelas suas comunidades e cidades ou até desafiar e interagir com escolas de outras cidades. E não nega que gostava que o movimento ganhasse uma dimensão mais global ainda. “Tenho curiosidade de fazer pesquisa: como se aborda alguém em Portugal para que ela tenha vontade de brincar? Como é na Dinamarca, em Recife, em São Paulo? A que tipo de brincadeira aderem mais? O meu desejo é que o PlayMonday se espalhe pelo mundo, que cada um faça e invente o seu. O único requisito é que seja brincadeira de bom trato.”

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