Vive numa das ruas mais movimentadas da Baixa Lisboeta. Maria das Dores abriu as portas de uma casa modesta mas com uma vista privilegiada sobre a capital. É à varanda que passa grande parte do seu tempo. Fica a olhar para o movimento frenético que dá vida à cidade enquanto dá atenção aos muitos canteiros de sardinheiras que enfeitam a fachada do prédio já antigo. Tem uma paixão por flores desde pequena. Hoje em dia, a vida é feita de uma rotina que em nada a incomoda.
“De manhã vou ao café, estou ali entretida entre as 8 e as 10 da manhã, tenho muita companhia. Depois venho para casa ligo um bocadinho a televisão. À hora de almoço vou ao restaurante ali à frente. Às vezes, vou à esquadra um bocadinho, uma agente da polícia faz-me sopas para me ajudar. Vou lá muitas vezes e assim passo o dia.”
Há 12 anos que a morada é a mesma. Maria vive sozinha mas diz que nunca se sentiu só. Ao longo do tempo, foi criando laços de amizade que encara como parte da família. O dono do restaurante em frente ao prédio oferece-lhe todos os dias o almoço e, mais do que isso, preocupa-se e está sempre disponível para ajudar. Quem também já faz parte da família são os agentes da PSP da 2º Esquadra da Baixa Pombalina. As equipas do policiamento de proximidade fazem visitas regulares, prestam assistência quando necessário e com o tempo criaram uma ligação que vai além do trabalho. Para vários dos agentes, Maria das Dores merece tanta atenção como um membro da família. Prova disso são os natais, as festas de aniversário, as constantes visitas e as idas ao médico sempre que necessário. Regularmente recebe também amigas, ligações que criou ao longo de décadas a trabalhar numa ourivesaria da Baixa.
“Ainda hoje me deram aquelas flores que tenho ali na jarra, uma senhora dos Correios. Tenho também muitas visitas, vem cá muita gente. Vizinhas e amigas aqui da zona. Eu fui empregada ali na ourivesaria na rua do Comércio, só me reformei aos 62 anos, tenho muitas amizades.
A palavra solidão pouco ou nada lhe diz e não perde tempo a pensar no assunto. A vida ensinou-a a olhar para as coisas boas, apesar do percurso difícil. Tinha 4 anos quando chegou a Portugal vinda de Angola, onde nasceu. Maria e os 2 irmãos foram acolhidos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Aos 13, foi transferida para a Casa Pia e durante 22 anos colegas e amigos foram a família dela. Os laços de sangue perderam-se com o tempo. O irmão morreu e à irmã não sabe do rasto. Teve dois amores e nenhum filho. Depois de uma vida de trabalho, acabou por se reformar. Diz que não lamenta não ter família nesta fase da vida. Não é de olhar para o passado e fica feliz por cada ano que soma, até porque nunca pensou chegar aos 86 anos.
Maria das Dores é um bom exemplo da forma como um idoso, apesar de não ter família, pode sentir-se integrado na sociedade. As pessoas à sua volta interessam-se, querem saber, querem ajudar, estão disponíveis. Certamente o sorriso que revela a todos os que se aproximam tem ajudado mas não é fácil que, numa das zonas mais movimentadas e menos habitadas de uma cidade grande, uma mulher a caminho dos 90 anos, sem família, com uma reforma que mal dá para a renda da casa, consiga dizer a seguinte frase:
“Tristezas não pagam dívidas, eu também não devo nada a ninguém por isso é bom ser assim: feliz.”
É feliz porque há quem sem preocupe.
ANA LÚCIA MARTINS, JORNALISTA SIC