
Ao senhor de óculos embaciados pela máscara e que passeia os dois cães, tão velhinhos que dói, e que me contou como um deles, que acolheu já adulto depois de ter sido abandonado, esteve um dia inteiro sem comer ou beber água porque ele teve de ir tratar de uns assuntos com o filho, ali para os lados de Santarém, e sabe, menina, eles são como crianças.
Àquela mulher com um filho que, enquanto os mais novos brincavam um pouco, porque a saudade, essa sim, é também um vírus, partilhou as angústias de ter atrasado a ida do filho para o primeiro ano e como ele passava as tardes sentado numa mesa a seu lado, a treinar a caligrafia, enquanto ela trabalhava, fazendo-me sentir como o amor pode ser tão grande que até afoga, mas o que lhe dizer a não ser que não se preocupasse, que eles apanham tudo e chegam lá como os outros, e ela suspira e fala de como tudo isto é difícil, pois é, e por isso todos os dias sai de casa ao final do dia e leva-o para ali, para o meio da calma, para serem apenas mãe e filho, só isso, tanto nisso.
Ao casal novo que corre todos os sábados e domingos de manhã e a quem eu desejo que estejam sempre na vida tão síncronos como os seus passos, porque gosto de uma boa história de amor, e a quem nunca falha aquele bom dia, tão vigoroso como a sua corrida e a sua juventude.
À rapariga, dona do rafeiro castanho que gosta de festas e de correr que nem um louco, ribanceira abaixa, ribanceira acima, e que o apresentou ao meu filho para que este também corresse relva fora, a atirar-lhe uma bola esfarelada vezes sem conta e a rebolar, feliz, nariz com focinho, até ficar exausto.
À vizinha do andar de baixo, que deixa pastilhas e chocolates de leite no saquinho que o meu filho um dia desceu por uma corda até ao primeiro andar, ele que agora lhe retribui os mimos com desenhos que são à sua maneira uma carta de amor, com muitas princesas, porque ela é uma menina e gosta de princesas, e como lhe vou dizer outra coisa a não ser pois sim, deve gostar, quem não gosta de princesas, amor?
A todos eles obrigada.
Vivemos num tempo estranho, em que mediamos a distância na rua a que passamos dos outros, em que corremos a tapar a cara quando se avista alguém, em que não contemplamos os rostos, em que não vemos sorrisos, em que as crianças se encolhem com medo quando alguém se avizinha. Mas são todas estas pessoas – e muitas outras mais – que aligeiram os dias, que me recordam que, para lá da distância, da ausência, do medo e da desconfiança, ainda existe o nós. Para todos eles, mesmo àqueles que nunca mais verei, o meu obrigada.
Ps: todos os intervenientes estiveram sempre de máscara e à devida distância.