Recomeçar quando seria hora de descansar. Perder tudo e seguir em frente. Encontrar numa nova forma de vida desprovida de conforto. Servir cafés, embalar, limpar casas de banho para sobreviver. Andar de terra em terra com a casa às costas. É sobre tudo isto que fala o filme ‘Nomadland – Sobreviver na América’, a terceira longa-metragem da realizadora Chloé Zhao, e que arrecadou o Golden Globe para Melhor Filme e Melhor Realização.
A viagem pela América de quem não tem casa fixa – não, não se tratam de sem-abrigos, como somos lembrados logo de início-, tem lugar através dos olhos de Fern (Frances McDormand) na sua viagem pelas vastas paisagens do oeste americano. Pelo caminho cruzamo-nos com Linda May, Swankie e Bob Wells, verdadeiros nómadas e não atores, que dividem connosco um instante do que é – e do que foi – a sua vida.
Sobre Fern apenas sabemos que, após a morte do marido e o colapso económico de uma cidade empresarial na zona rural de Nevada, meteu os poucos bens que lhe restaram num armazém, arranjou a sua carrinha e partiu estrada fora. Torna-se nómada, viajando em busca de trabalho sazonal e cruzando-se com outros que, por culpa da crise económica de 2008, perderam os seus empregos e tiveram de procurar novas formas de sobrevivência. São os nómadas modernos, de rostos marcados pelos anos, da geração que nasceu nos anos 50 e 60, antigos operários, a quem o sistema esqueceu.
Nas enormes planícies americanas, os nómadas modernos reúnem-se em redor de fogueiras, falam do que ficou para trás e saram feridas, sentem-se livres na imensidão do céu, trabalham nos empregos que mais ninguém quer e na manhã seguinte levantam-se e começam tudo de novo noutro sítio qualquer.
Mas atenção: eles não querem a nossa comiseração. Por questão de respeito, vamos deixá-la na gaveta. O que impressiona neste filme, magistralmente filmado, é a dignidade daqueles homens e mulheres, na sua aspiração legítima por autonomia, não dependendo de ninguém a não ser próprios, mesmo quando é da família de quem se fala. Fern é o exemplo disso mesmo na sua determinação em recusar o convite da irmã para ir morar com ela e o marido. A incompreensão da irmã pela opção de Fern é a mesma incompreensão da sociedade face à escolha de um modo de vida ‘alternativo’, mas que permite a quem perdeu quase tudo manter o mais importante: a dignidade.
Um filme sem pressa, que ilumina quem vive na sombra, os despojados dos tempos modernos, que se alimentam de migalhas na terra dita da abundância. Até quando?