Kate McCann
O seu apelido nem sequer é McCann, mas esta é a menor das mudanças que ocorreram na vida de Kate Healy desde o desaparecimento da filha, Madeleine, a 3 de maio de 2007, do quarto onde dormia com os irmãos, no Algarve. Foi há quatro anos. Entre as manchetes dos media, a constituição como suspeitos de homicídio ou a criação de um fundo para a busca de Madeleine, a vida de Kate e Gerry McCann está desde então centrada num único objetivo: descobrir o que aconteceu. O processo foi encerrado em 2008 por falta de provas, tanto relativamente à hipótese de rapto como à de morte acidental seguida de ocultação de cadáver pelos pais. Eles acreditam que ela foi raptada e pode estar viva. Em maio, vieram a Portugal lançar o livro ‘Madeleine’ (ASA), o mesmo mês em que se soube que conseguiram que uma equipa de 30 investigadores da Scotland Yard voltasse a analisar a investigação feita pela PJ. O tempo, esse, não volta para trás e a culpa por ter deixado os filhos sozinhos naquela noite veio para ficar. Madeleine teria hoje oito anos.
Continua a acreditar que a Madeleine pode estar viva?
Há uma percentagem grande de crianças que foram raptadas e desapareceram durante anos, por vezes décadas, e apareceram quando já ninguém esperava. É importante lembrar isso. Não acho que algum pai consiga alguma vez desistir da procura de um filho que desapareceu, mas claro que décadas depois é difícil saber o que se pode ainda fazer. Quis publicar o livro porque tenho esperança que ela esteja viva e que haja alguém com informações que nos possam levar a ela. Queremos manter a memória de Madeleine viva na mente das pessoas.
Imagina-se a esperar décadas ou nunca vir a saber?
É difícil imaginar o que se pode esperar passados 18 ou 19 anos. Muitas destas crianças eram adultos quando apareceram, há um caso em que foi a própria criança já crescida que descobriu que tinha sido raptada e foi procurar os pais verdadeiros. Eu nunca imaginei que estaria nesta posição, naqueles dias só conseguia pensar em termos de horas, depois passou um mês e agora vamos em quatro anos, mas tenho de estar preparada. A ideia de nunca vir a saber é o pior, esse sentimento horrível de incerteza e também de não poder parar.
Seria preferível saber, ainda que fosse o pior?
Claro que já tive de pensar nisso, se ela não estivesse viva e eu soubesse, saberia pelo menos que não haveria mais nada que eu pudesse fazer. Não saber é uma espécie de tortura, na verdade, sobretudo quando sabemos que alguém sabe. Há alguém que sabe. Temos sempre essa pressão sobre nós quando fazemos uma pausa, um sentimento de que devíamos estar a fazer alguma coisa. Vivemos neste redemoinho de incerteza e com a impossibilidade de planear alguma coisa por inteiro, porque nunca sabemos o que vai acontecer. É uma espécie de novo conceito de normalidade com o qual aprendemos a viver. Nunca mais haverá uma ‘vida normal’ como antes.
É impossível fazer o luto, o que significa que o sofrimento está sempre presente?
Agora, começamos a entrar numa fase em que já conseguimos tirar prazer das coisas ou fazer uma pausa sem ter aquela sensação persistente de que é errado porque a Madeleine não está connosco. Como é que podia desfrutar do que quer que fosse enquanto ela estava desaparecida? Levou-me muito tempo até que me permitisse desfrutar de pouco prazer que fosse…
Há quatro anos que vive em função de Madeleine. Existe ainda uma Kate para além dela?
Existe porque, felizmente, também sou mãe do Sean e da Amélie. Os gémeos são uma grande parte da nossa vida. Mas serei sempre mãe da Madeleine, deixei de exercer medicina e o meu trabalho nos últimos quatro anos tem sido a campanha pela procura dela, é um emprego a tempo inteiro, o trabalho mais importante que alguma vez tive de fazer na vida.
Deixar de trabalhar não torna as coisas mais difíceis para si?
O Gerry tem essa capacidade de separar as coisas e a profissão ajuda-o a manter a sanidade. Eu não seria capaz, não iria estar lá a 100%. Poderei voltar a trabalhar, mas provavelmente em algo relacionado com crianças desaparecidas.
Vai haver uma reavaliação da investigação pela polícia britânica. Sentem-se mais perto de saber o que aconteceu?
Infelizmente não, e custa muito depois de nos termos esforçado tanto. A nossa esperança é que uma avaliação global possa trazer um insight novo, às vezes as informações soltas podem não significar muito mas conectadas tornam-se significativas.
Tornaram-se numa espécie de embaixadores em relação ao problema das crianças desaparecidas… Sentiram essa obrigação?
O que passámos é uma situação horrivelmente única e adquirimos tanta experiência que se aquilo por que passámos puder ajudar outras crianças será menos mau. Por isso, participamos em campanhas como a do Dia Internacional da Criança Desaparecida (26 maio) e lutámos pela implementação de um sistema de alerta para o salvamento de crianças em toda a Europa, cuja resolução foi adotada pelo Parlamento Europeu em 2008.
Costumam ser contactados por pais que estão a passar o mesmo?
Sim, e nos primeiros meses isso custava muito. É diferente conhecer a família de uma criança que foi encontrada, o que nos dá esperança, do que conhecer uma família de uma criança desaparecida há 20 anos, quando tudo o que queríamos era acreditar que ela ia aparecer no dia seguinte. Agora que estamos na fase dos ‘anos’, conseguimos perceber o que essas pessoas sentem. É um clube a que ninguém quer pertencer.
Consegue dar sentido ao que aconteceu?
Para a Madeleine, não é possível encontrar qualquer sentido. A única coisa positiva é a maior sensibilização que podemos trazer às pessoas acerca deste problema. A um nível pessoal, posso dizer que descobri bastante bondade nas pessoas.
Continua a crer que a maioria das pessoas é boa?
Sim, definitivamente, só que é uma maioria silenciosa. Quando voltámos de Portugal, recebíamos alguma correspondência maldosa mas a maioria era de apoio. Nos primeiros meses, o nível de crítica era grande e isso agudizava a dor, mas com a passagem do tempo fui–me tornando mais forte, penso ‘quem são estas pessoas e que vidas terão?’, aprendi a ignorá-las. Também tivemos apoio da família e algo que nunca imaginava que é sentir o apoio de pessoas que não conheço. Já escrevi a outros pais que passaram pelo mesmo porque sei a diferença que isso faz.
Mantém o quarto da Madeleine intacto?
Não podemos desfazer o quarto sem saber o que aconteceu. Ela pode estar viva. Pomos lá os presentes que lhe vão dando e às vezes estamos lá a conversar. Não podemos fazer como se não existisse, por isso tentamos integrar isto numa nova normalidade.
É como viver com uma ferida aberta?
Durante muito tempo era estranho falar de outra coisa que não fosse a Madeleine, era como se não nos pudéssemos dar a esse luxo, e acredito que fosse duro para os nossos amigos. Agora é um
bocadinho mais fácil, mas continuamos menos disponíveis para nos preocupar- mos com coisas triviais, é como se tivéssemos uma perspetiva diferente.
Os gémeos sabem o que se passou?
Fomos aconselhados por um psicólogo infantil a não lhes mentir, mas a deixar que sejam eles a perguntar e ir respondendo quando perguntarem. Eles sabem que a irmã foi raptada, e que foi levada por um homem mau e estamos à procura dela. Queremos que tenham o menor número de surpresas possível quando começarem a ler outras coisas.
Escrever o livro obrigou-a a reviver tudo?
Foi emocionalmente desgastante. Escrevi com base no diário que mantive desde que a Madeleine desapareceu. Inicialmente, ia dando ao Gerry a ler. Deu-nos a oportunidade de falar sobre muita coisa, por mais que comuniquemos há sempre coisas que é difícil transmitir e havia alturas em que lia e vinha ter comigo a chorar…
Conseguiu já pacificar-se com o sofrimento?
Já não me consome tanto como nos primeiros tempos. Nunca poderemos ser completamente felizes, a pura felicidade é impossível não estando a Madeleine presente e teremos sempre na cabeça que ela deveria estar connosco.
Imagina o seu regresso?
Sempre resisti a especular porque é algo que quero tanto que não me quero perturbar, não me permito ir por aí com frequência. Mais recentemente, tive de pensar em como ela estará, às vezes são os próprios gémeos a comentar um com o outro ‘Onde andará a Madeleine agora?’ e também quando olho para os amigos dela e como eles estão, percebo que a Madeleine já deve estar daquela altura…