A Inês tem 5 anos e é a criança que todos os pais desejariam ter: doce, simpática, meiga, calma. Exceto numa coisa: perder é que não é com ela. “Quando perde a qualquer coisa, seja o Jogo da Glória ou às damas, transfigura-se”, diz a mãe. “Fica furiosa, parece outra criança. Isto aflige-me, porque cá em casa nunca fomos competitivos, e não acho bem que uma criança tão pequena dê tanta importância a uma coisa que não tem importância nenhuma”. Pois… não tem para ti, diria a Inês.
Por que é que até a criança mais pequenina é viciada em ganhar? “Não somos todos?”, comenta a psicóloga Rita Xarepe. “ Ganhar é qualquer coisa que vem de muito fundo em nós, que está nos nossos genes. É a lei da sobrevivência. Darwin explica, vencem os mais fortes. E até os mais pequeninos sabem que têm de lutar para sobreviver.”
Mas a verdade é que perder faz parte da vida, e muito mais do que ganhar. Jogar a quase tudo implica perder: perder às cartas, ao futebol, ao Jogo da Glória, ao xadrez, perder sozinho ou em equipa, foi coisa que nos aconteceu – e acontece – a todos. Mas parece que é arte em vias de extinção: segundo o blog do jornal ‘The New Yok Times’, as crianças andam a perder pouco. A moda de jogar apenas jogos não competitivos para não ‘traumatizar’ as crianças, e a ênfase na vitória e na ‘autoestima’ está a retirar aos mais pequenos a importante lição que é perder.
Mas afinal, serve para quê, perder? Para ganhar… resistência. “Em vez de habituarmos as crianças a esperar aplausos constantes, devíamos oferecer-lhes a possibilidade de perder,” nota a blogger Jennifer Greenstein. “Eles vão ganhar resistência e uma noção realista de como o mundo funciona.”
O ‘não’ está garantido
“Digo muitas vezes aos meus filhos que eles vão perder muito mais vezes do que vão ganhar”, nota Eduarda Matos, mãe de dois rapazes adolescentes. “O ‘não’ já está garantido. Tudo o que vier só pode ser igual ou melhor. E eles habituaram-se a ir à luta sabendo isso, e a tirar muito mais prazer de uma vitória conseguida a pulso.”
Um bom perdedor é um bom vencedor, portanto? “Claro”, afirma Rita Xarepe. “Se soubermos perder, ganhamos infinitamente mais do que se ganhamos.” Eh… se calhar, mas não quando se tem 5 anos… “É verdade,” ri a psicóloga. “Mas é esse o desafio para um educador. Só eu é que posso, partindo das minhas dificuldades, tornar-me um vencedor. Ou seja, se ganho sempre, não adquiro os processos intermédios que é preciso conquistar para ganhar. Por isso, é sempre melhor educá-los para saber tirar partido dos momentos em que se perde. Aliás, as grandes vitórias que nos deixam com a lágrima ao canto do olho são aquelas que implicaram lutas e perdas que te transformam. Se ganhares, ganhas aquele jogo e mais nada, porque isso não te trouxe nada enquanto ser humano…”
Mas isto não é difícil de explicar a uma criança? “É. Por isso é que a melhor maneira de o fazer é através das nossas ações. Se um pai está sempre a apregoar que não faz mal perder mas ele próprio faz cara feia quando perde, como é que vai ensinar?”
Ai que a seleção perdeu!
E quando perder ou ganhar não depende de nós mas do nosso clube? “No Brasil houve um problema enorme por causa do Mundial, quando o Brasil não ganhou a copa, porque os miúdos vibram desde pequeninos com as vitórias do futebol”, lembra Rita Xarepe. Resultado: as crianças ficaram muito mais frustradas que os adultos. Algumas deixaram de comer e atingiram situações extremas de frustração. Mas também aqui em Portugal não faltam miúdos que vivem para o clube do seu coração, por vezes exageradamente.
O que é que se faz se o Benfica perde e a criança desespera? “Nestas situações, temos que lhes dizer que o clube não são eles, não é um prolongamento deles, não tens controlo sobre aquilo”, nota Rita. “Mas claro que quando o mundo à volta está em delírio, é complicado. Ainda por cima, a força da união entre adeptos é quase mágica. E é de facto muito importante, mas quando serve para alguma coisa, quando nos unimos aos outros e conseguimos resultados concretos graças a esse esforço. Não é o caso do futebol, que pode acabar bem ou mal e não depende de nós. A criança ali está sem controlo absolutamente algum.”
Então e a moda de abolir os jogos competitivos para não os traumatizar? “A brincadeira é essencial para eles aprenderem a perder”, nota Rita. “Acho que não se deve abolir os jogos em que se ganha e se perde, até porque eles fazem isso espontaneamente. Mas sabem que são brincadeiras, que podem brincar sem se magoarem.”
Ajude-o a encontrar o seu espaço de vencedor
Então vamos à prática: imaginemos que tenho 10 anos, entrei numa corrida ou num jogo, fiquei em segundo lugar, estou chateada que nem um peru. Que é que posso tirar de bom daqui? “Imagina que até estavas à espera de ficar em 4º e ficaste em 2º…” Não estava nada! Estava à espera da medalha de ouro mesmo! “ Bem, aí avalias a situação, percebes que se o outro mereceu ganhar porque correu mais, então é lógico ter ganho…”
O problema aqui é que competir exige coragem, principalmente quando já sabemos que as nossas hipóteses de vitória são fracas. “Por isso é que cada miúdo tem de conhecer as suas potencialidades. Se souber aquilo em que é bom, não se vai importar tanto se perder noutras coisas”, lembra Rita. “Se tiveres dentro de ti o teu espaço de vencedor, o espaço em que és bom, isso ninguém te tira e podes perder o que for preciso.” Toda a gente tem o seu espaço de vencedor? “Toda a gente. Sabes que não podes ser boa a tudo. Portanto, ou concorres para te divertires e levas na descontração, ou não concorres.”
Ajudá-los a conhecerem-se bem é o papel dos pais: ajude-os a saber o que é que mais gostam de fazer, aquilo para que têm mais jeito, a sua vocação. As crianças não devem ter como única alegria na vida qualquer coisa que não depende delas, como o futebol, porque aí sim, vão sofrer! Dar-lhes apenas o futebol como hipótese de vitória é tirar-lhes o chão!
Também é importante valorizar o percurso, para além do resultado. É bom não ter medo de experimentar e de fazer má figura. Problema: é difícil que eles sejam assim quando nós temos todos um medo pavoroso de falhar. Lá vem o ‘cuidado Joãozinho que tu cais!” – e ele cai mesmo.
Os Descobridores deviam ter sido todos orfãos… “Os pais querem vê-los vencer”, nota Rita. “Se um filho perde, parece que a culpa é tua, que tu é que falhaste enquanto mãe. Aliás, as derrotas dos filhos podem ser uma boa oportunidade para os pais reviverem perdas pessoais não ultrapassadas. Por isso é bom relativizar a coisa e dar-lhes colo, porque se os pais só gostam de ti se tu ganhas, é terrível. O importante é que perder não o torne um perdedor, mas que o torne imaginativo: como dar a volta à derrota criativamente e conseguir tirar de uma frustração qualquer coisa de bom?”
O amor contra a derrota
Pode haver várias razões para reagir muito mal à derrota. A principal parece lamechas mas lá vai: falta de amor. “Podes ter pouco dentro de ti”, defende Rita. “Deram-te tão pouco na vida, que, se tu perdes, isso vai ressoar lá no centro e vai-te doer mais, vai sentir cada perda como um abandono. Isso é muito complicado. Crianças mal-amadas geralmente perdem mal. Depois há o oposto, as crianças que nunca ouvem um ‘não’. Pais que não os ensinaram a perder enganaram-nas fazendo crer que pode ser tudo como elas querem. Isso é amá-las mal.”
O amor é a base de tudo? “Sim. Podes perder tudo quando tens amor, porque estás cheio. Mas mesmo que não estejas cheio pelos teus pais, podes aprender a encher-te de outras maneiras. É importante ensinar as crianças a bastarem-se a elas próprias, a serem autossuficientes, a não precisarem de vampirizar os outros para se sentirem inteiras.” O que é isso de vampirizarem? “É importante que eles não precisem que os outros percam para se sentirem vencedores. Toda a gente pode estar bem sem precisar que os outros estejam mal. Só que isto nem os pais sabem gerir, quanto mais passá-lo às crianças…”
Portanto, não são as dificuldades que te moldam mas a forma como lhes dás a volta. “Por que é que perder há de ser mau? É importante ver para além do óbvio. O que nos habituaram a achar mau não o é necessariamente, e vice-versa. E temos de estar muito atentos para não nos deixarmos enganar.” E as crianças são capazes de fazer isso? “São. É difícil, porque estão cada vez mais habituadas a que tudo seja fácil e a não terem de pensar. Mas têm de ter limites, têm de achar a sua âncora. E há coisas que todos nós temos de perder, porque só se as perdermos é que vamos ter espaço para aquelas que nos fazem verdadeiramente felizes.”
Retrato de um vencedor
Acima de tudo, o importante é relativizar, porque quando perdemos, parece que o mundo acabou. “E à noite é pior”, diz Rita. “Estamos mesmo no fundo do poço. Mas no dia seguinte, alguma coisa te mostra que afinal não era assim tão grave, a vida continua, há novas portas que se abrem e novos sonhos que surgem.”
Portanto, ensine a sua criança a não levar as coisas tão a sério, não estar tão virada para o umbigo, a não perder a noção da realidade e dos outros. Nenhuma vida é feita só de vitórias. “E os vencedores costumam ser pessoas equilibradas, que tiveram pais apoiantes. Não os lideres institucionais, mas as pessoas que admiramos, são pessoas que nem valorizam assim tanto as vitórias, parece que não precisam de nada porque têm tudo dentro deles. E as coisas facilmente lhes acontecem, porque não andam ali a tentar ganhar e superar os outros, estão no seu caminho e ele leva-os naturalmente às vitórias, ou à maior vitória, que é a de ser feliz.”
Devemos deixá-los ganhar?
A mãe que nunca fez isto que atire o primeiro dado. Mas será o que se deve fazer? “Bem, depende da idade”, defende Rita Xarepe. “Aquele jogo em que o pai está à luta com um filho pequeno e se deixa derrotar, aí é bom que isso aconteça. Ambos sabem que o pai está a dizer, “sou suficientemente forte para te deixar ganhar”, e aquilo é só um jogo, uma coisa divertida. Agora deixá-los ganhar os jogos por sistema, não.” Na pré-primária, as crianças fazem mais birras porque ainda não têm as palavras necessárias para exprimir a sua frustração. Depois dos 4 anos, já devem começar a habituar-se a situações em que ora ganham ora perdem. Aliás, deixe que eles o vejam perder de vez em quando. Pode dizer qualquer coisa tipo: “Olha, perdi! Não faz mal, vou ganhar da próxima vez.”