Formou-se em Bioquímica e é investigadora principal no I3S, no Porto, desde 2014. Até lá chegar, fez o pós-doutoramento na Harvard Medical School e trabalhou no MD Anderson Cancer Center de Huston, considerado um dos melhores centros de pesquisa e tratamento de cancro em todo o mundo. Mas o que sempre quis foi regressar para trabalhar em Portugal.
Em 2015, foi uma das 3 premiadas com uma Medalha de Honra para as Mulheres na Ciência, da L’Oréal. O motivo: descobriu uma proteína presente nos exossomas, partículas nanoscópicas presentes em fluidos humanos como o sangue, que vai permitir detetar cancro do pâncreas em fases iniciais e que pode redefinir a forma como se diagnostica e trata esta doença.
Para além de tudo isto, ainda dá aulas na universidade, está a fazer algumas cadeiras do curso de Medicina… e é mãe de um bebé de 6 meses.
O que são estes exossomas da sua investigação, e como podem ser importantes para o diagnóstico e tratamento do cancro do pâncreas?
As células do nosso corpo libertam estas pequenas vesículas, os exossomas. Nem sequer são microscópicas – são uma ‘bolhinhas’ nanoscópicas, tão pequenas que um microscópio normal não as distingue. São libertadas para todos os fluidos corporais. O sangue é de mais fácil acesso mas também se estuda a possibilidade de usar os exossomas libertados na urina para testar biomarcadores para o cancro da bexiga, por exemplo. São importantes porque contêm dentro de si parte da informação genética da célula que o libertou. Ou seja, não preciso de ir à célula de onde ele saiu para saber que tipo de alterações aquele ADN tem. Estamos a trabalhar no sentido de que, no futuro, seja dispensável fazer procedimentos invasivos como a biopsia – o que, no caso do cancro do pâncreas, é bastante invasivo por causa da disposição anatómica do órgão. [Com os exossomas] não só se consegue saber se a pessoa tem ou não um cancro, como (e mais importante) se consegue saber que tipos de mutações lá existem. Isso permite direcionar o doente para um tipo de terapia muito mais adequada ao seu tipo de tumor. Além disso, ajuda-nos a monitorizar a evolução da doença daquele paciente – se o cancro começar a desaparecer, numa análise ao sangue, esses exossomas desaparecem também da circulação.
Já se investigam as aplicações dos exossomas há alguns anos. Explique-nos um pouco melhor o que é que a equipa que lidera descobriu de novo, relativamente a eles.
Um dos grandes problemas deste tipo de cancro é não conseguir ser diagnosticado suficientemente cedo. Se o for, mais de 80% dos casos são tratáveis – é fácil retirar parte do pâncreas, ou mesmo o órgão todo, e a pessoa pode viver livre da doença neoplásica. As pessoas têm a noção que o cancro do pâncreas é mais agressivo que todos os outros, mas o problema não é esse: é ele ser muito silencioso. Pode ser quase assintomático, no início, ou então os sintomas não são muito específicos. Quando se diagnostica, já está em estado muito avançado, já têm metástases e não é possível retirar o tumor primário. A proteína que se utiliza hoje como marcador para saber se temos cancro do pâncreas é o CA 19/9. É um bocado inespecífico, pouco sensível, mas é o melhor que temos. Mas, quando aparece nas análises, já é com valores demasiado altos.
Conseguimos encontrar uma proteína, o GPC1 (glipicano 1), à superfície dos exossomas produzidos por células do cancro do pâncreas. Esta proteína permite-nos distinguir um paciente com uma lesão tão pequena no pâncreas que, na maior parte das vezes, nem se consegue distinguir numa TAC ou ressonância magnética. Com estes pacientes, que mais tarde desenvolvem cancro, conseguimos fazer uma deteção precoce do cancro.
Estão a trabalhar com equipas portuguesas ou estrangeiras?
Neste momento temos duas colaborações: uma com o Instituto Superior de Engenharia do Porto e o IPO, e um outro com grupo alemão, de Leipzig, muito reconhecido em nanotecnologia. Contactaram-nos porque estão muito interessados em desenvolver sistemas que consigam monitorizar a quantidade e a qualidade dos exossomas em pacientes.
É verdade que não foi para Medicina porque não suportava ver sangue?
É mesmo isso (risos). Quando vou tirar sangue, tenho que recrutar um grupo de pessoas para estarem comigo porque morro de medo. Chegava a desmaiar (hoje já não é tanto assim, mas ainda fico muito incomodada). Quando regressei a Portugal, inscrevi-me no curso de Medicina, aqui no Porto. Vou fazendo umas cadeiras em regime de trabalhador-estudante. Nós, em laboratório, em Bioquímica, estamos habituados a trabalhar com coisas inanimadas e ficamos mais pela base molecular e das células. O curso de Medicina não é para eu ver pacientes, porque não tenho jeito para isso, mas para perceber o lado mais humano, de anatomia, e porque assim consigo complementar melhor o trabalho em laboratório.
Fazer Ciência em Portugal ainda é um trabalho de Hércules?
Não posso dizer melhor. As pessoas aqui têm feito um trabalho extraordinário. Tive uma sorte imensa por ter vindo para aqui – inicialmente para o IPATIMUP, que se fundiu num mega instituto, o I3S – que não tem nada a menos do que todos os outros institutos em que trabalhei no mundo. É um dos melhores sítios onde estive até hoje, apesar das pessoas acharem que Harvard é que é “amazing” (e é). O financiamento não é comparável – os americanos trabalham à escala dos biliões – mas nos podemos queixar. Tenho algum financiamento estrangeiro, para além de português. Esse é mais fácil e menos burocrático. Dizem que começa dia X e que acaba dia Y, e começa e acaba mesmo nestes dias. Custa bastante as pessoas planearem a sua investigação e pagarem às pessoas que trabalham com elas, nunca sabem quando vai existir dinheiro para isso. Temos que ser melhores com estas burocracias e datas, é o único senão.
Porque não quis ficar nos EUA? Não é mais desejável trabalhar por lá?
A opção de voltar a Portugal prendeu-se com a minha família e achar que aqui é que é a minha casa. Aquilo que o meu chefe em Huston mais queria na vida era que eu ficasse lá. Ofereceu-me uma posição como professora associada no MD Anderson, com um pacote inicial de perto de 1 milhão de euros para montar equipa de investigação – em Portugal são 50 mil euros para um investigador da Fundação de Ciência e Tecnologia. Para os norte-americanos, os ‘porquês’ têm muito impacto, por isso os meus colegas achavam que não tinha cabimento que eu quisesse voltar a Portugal. Avisei, desde o início que queria voltar a Portugal, mas para uma posição em que tivesse a possibilidade de ter mesmo um emprego.
Mas essa vontade é transversal a quase toda a gente que trabalha no estrangeiro. No final de janeiro contratei um Lab Manager – alguém que precisa de ter um doutoramento, um cargo já bastante bom – e recebi 46 candidaturas. A grande maioria é de portugueses a trabalhar lá fora. As pessoas precisam é de ver que há colocações e contratos. A ideia de que em Portugal não há nada nem se faz nada, é tão vincada que as pessoas nem se dão ao trabalho de procurar. Mas a nossa família está cá, a qualidade de vida que há Portugal é muito diferente. Isso de que mais desejável trabalhar lá fora é uma ideia mais presente em quem nunca trabalhou no estrangeiro.
Como está a situação das mulheres na Ciência em Portugal? Ainda estamos muito atrás dos homens?
Não, nesse aspeto estamos anos-luz à frente dos norte-americanos. Nos EUA conseguia ver a pirâmide hierárquica a mudar de género: quase não havia mulheres do topo, como investigadores principais. Só conhecia a mulher do presidente da instituição, a mulher do vice-presidente e uma amiga minha, que praticamente não tem vida pessoal. Conheço pessoas que foram despromovidas lá porque tiraram o tempo todo de licença de parto! A minha dificuldade aqui é encontrar homens para trabalhar na equipa. Numa das colocações para a qual abri vaga, tive 90 e tal candidaturas e só uma era de um homem. Já existem muitas mulheres, não só nos cargos mais baixos, mas a subir na carreira e que conseguem aliar muito bem a família e a vida pessoal com uma carreira científica, e até ainda à docência na universidade. O apoio da família é muito importante, claro. Eu tenho bastante, até porque tenho um bebé com seis meses. Quando eu não posso, o meu marido está disponível e temos as avós. Aqui a sociedade conseguiu ver as mulheres como iguais, a nível laboral e na Ciência. É claro que continua a haver aquela culpa inerente, de estarmos a trabalhar e a fazer várias coisas ao mesmo tempo. Depois paramos e pensarmos se estamos ou não a ser egoístas. Mas a família também sente quando estamos frustradas e não quer isso para nós.
(Notícia atualizada a 4 de março: As funções de Sónia Melo como investigadora principal do I3S estão suspensas desde 29 de fevereiro, até à conclusão de um inquérito ao seu trabalho, realizado por uma comissão externa. A cientista enfrenta indícios de manipulação de imagens usadas nos seus trabalhos publicados por revistas científicas. Esta suspensão não afeta, porém, a sua atividade no grupo de investigação onde está inserida, esclareceu o Gabinete de Comunicação do I3S em notícia publicada ontem pelo jornal Público.)