Quem tem fome tem pressa. E o flagelo é muito maior do que se pode imaginar.
De acordo com a agência Lusa, os portugueses usam cada vez mais as linhas de apoio em crise para relatar que não têm comida para pôr na mesa. Já o Banco Alimentar contra a Fome alerta para o facto de o surto de COVID-19 ter deixado muitas famílias que nunca tinham estado numa situação de pobreza em grandes dificuldades.
Tânia Serrano, 30, não conseguiu ficar indiferente a esta realidade que conhece bem, por experiência própria. A organizadora de eventos passou oito anos fora de Portugal e viveu em diferentes países, incluindo Espanha, China, Inglaterra e, mais recentemente, a Indonésia. Esteve sempre muito ligada a causas sociais em todos eles, como voluntária. Em Bali, a empresa onde trabalhava foi à falência e deu por si sem dinheiro.
“Tive vergonha de pedir ajuda à minha família e, na altura, foram estranhos que me ajudaram”, conta-nos. “Eu sei perfeitamente o que é ter vergonha de pedir comida ou ter vergonha de pedir ajuda, porque custa-nos, às vezes, admitir que estamos a falhar”.
O regresso ao País coincidiu com o início do segundo confinamento. Sem oportunidades de trabalho na área de formação e inspirada pelo episódio vivido no Sudeste Asiático, Tânia decidiu ajudar os outros de alguma forma. Foi assim que nasceu a ideia de criar uma ação solidária para combater a fome das famílias portuguesas durante a pandemia.
Como foi o processo para dares vida a esta ideia?
Foi tudo muito ao acaso. Eu já me tinha disponibilizado para ajudar pessoas em situações vulneráveis, através das redes sociais. Entretanto, reparei que um amigo estava a entregar bens alimentares a famílias e ofereci-me para ajudar. Ele ia entrar num reality show e eu acabei por ficar encarregue das entregas pendentes. A palavra passou de boca em boca e, de repente, tínhamos 46 pedidos e imensos donativos.
Qual é o balanço que fazes da primeira ação?
Foi incrível e, ao mesmo tempo, muito bonita. Recebi muita ajuda inesperada de amigos e familiares, e só consegui chegar a tanta gente por causa deles. Entreguei a maioria dos produtos alimentares na área da Grande Lisboa, mas também tinha amigos a mobilizarem-se em Bragança, em Viseu e no Porto. Em apenas quatro dias, conseguimos fazer chegar 22 cabazes a 33 famílias.
Entretanto, a ação escalou e, com essa ajuda preciosa de pessoas próximas, consegui fazer entregas em duas ocasiões a um total de 46 famílias. As coisas só acalmaram em meados de março passado, quando eu fiquei sem donativos.
O número de pedidos de ajuda que recebeste surpreendeu-te?
Bastante! Eu não estava à espera de receber as mensagens que recebi. Aliás, no segundo dia, eu só chorava. Recebi mensagens um bocado fortes com histórias de pessoas que não estavam a conseguir ajuda do Estado. Também percebi que as as associações não estavam a conseguir chegar a toda a gente, por conta do elevado número de pedidos.
Tenho a sorte de a minha mãe estar ligada à área da solidariedade social [Fátima Serrano, secretária-geral da Associação CrescerSer] e eu, pessoalmente, estou muito ligada ao Centro de Acolhimento Temporário Casa da Encosta. Foi através dessa casa que eu consegui ajuda com donativos e tornar esta ação mais credível. Foi uma ajuda enorme.
Sentes que ainda há muita vergonha em pedir ajuda?
Sim! Eu vi muitos casos de pessoas que até estavam bem e ficaram sem emprego. De repente, deixaram de conseguir dar aquilo a que estavam habituados aos filhos. É muito complicado aceitarem que estão nesta situação, especialmente com a pressão de não quererem mostrar aos filhos que estão a sofrer.
Como é que a tua iniciativa se cruzou com o projeto #todasmerecemos?
Aconteceu em fevereiro passado. Na altura, fui contactada e conheci as pessoas por detrás deste projeto solidário, que é uma iniciativa das ativistas Joana Seixas, Joana Guerra Tadeu e Isabel Abreu e visa promover a vivência baseada em direitos e sustentabilidade da vida menstrual. A partir aí, surgiu a oportunidade de adicionarmos cabazes sustentáveis relacionados com este objetivo aos cabazes de comida. Neste momento, estou a tentar reunir donativos novamente para poder fazer uma nova ação solidária e acrescentar os cabazes doados pelo Todas Merecemos.
Como é que as pessoas podem contribuir?
Eu estou a apoiar-me muito na Casa da Encosta para receber donativos. As pessoas podem entregar bens alimentares – até preferimos assim – no centro de acolhimento ou, se assim o preferirem, também podem fazer uma transferência bancária diretamente para o NIB da Casa da Encosta.
Perante todas as dificuldades, qual é a tua motivação para continuares a fazer estas ações solidárias?
Eu não consigo ficar a olhar e dizer ‘temos de ajudar’; tenho de agir de alguma forma. Se eu sentir que posso fazer a diferença, por mais pequena que seja, vou tentar. Gostava de fazer mais pelo planeta e pelas pessoas, mas, neste momento, não consigo sozinha.
O que queres que as pessoas tenham em mente ao lerem este artigo?
Não sabemos o que se passa por detrás do sorriso de cada um e, obviamente, doar não é uma obrigação. As pessoas só devem ajudar se lhes fizer sentido e, por mais pequeno que seja o donativo, com certeza fará a diferença.