Gisela Casimiro (Foto: Filipe Ferreira)

Representatividade. Substantivo feminino, mas que abrange todos no seu todo. Palavra de ordem que inclui e que deu o mote a esta conversa com Gisela Casimiro, escritora, artista, performer e ativista portuguesa, autora do livro de poesia “Erosão”, que faz das suas palavras e da sua voz instrumentos de luta contra o preconceito. “O tema da representatividade, para mim, nunca deixa de estar presente. Agora é ‘A Pequena Sereia’, o ‘James Bond’ que esteve para ser representado por Idris Elba, a polémica com o elenco de ‘O Senhor dos Anéis: O Poder do Anel’. Nos comentários das redes sociais, as pessoas ainda perguntam como é que a comunidade negra se sentiria, se se embranquecesse Wakanda, como se quase tudo não tivesse sempre sido branco em termos de universos de fantasia, de super-heróis, de ação – já nem falo da realidade. Continuamos a comparar o incomparável e a insistir numa fantasia de poder absoluto e colonial”, começou por afirmar a escritora, sem esquecer a importância que tem para uma criança reconhecer-se nos diferentes palcos do dia-a-dia. “A importância para as crianças racializadas de verem pessoas como elas na tv, na publicidade, na moda, no direito, na gestão, na ciência, etc, é a de inspirá-las a sonhar e a realizar os seus sonhos. Para as crianças não-racializadas é igualmente importante, para normalizarem, respeitarem e celebrarem essas presenças nos media, estendendo esses sentimentos às demais crianças e adultos que fazem parte das suas vidas. Para uma pessoa racializada que ocupa um lugar público, seja de que área for, também é igualmente importante saber que chega ao maior número possível de pessoas, e que isso inclui pessoas parecidas consigo. Toda a sociedade beneficia com a representatividade porque todas as pessoas são parte efetiva da sociedade”, sublinhou.

Li um texto seu em que dizia que, em criança, seria impossível rever-se nas bonecas que habitavam em sua casa. Essa falta de identificação deixa lacunas emocionais?

Eu não tive bonecas negras, mas também não tive muita representatividade na sala de aula ou na tv portuguesa, que para mim teria tido mais impacto do que qualquer boneca, até porque sempre fui mais de livros e adorava ver televisão, sempre tive uma imaginação muito fértil. Tive de esperar que chegassem ferramentas e figuras melhores para sonhar. Mas agarramo-nos ao que temos, ao que vemos, nem que isso implique ver e rever os mesmos conteúdos e ir buscar força aí. Alguns exemplos? A RTP2 e a RTP África tinham jornalistas e apresentadoras negras. Foi muito importante o caminho traçado por pessoas como a Carla Adão, a Ana Sofia Martins ou a Cláudia Semedo. A Taís Araújo, o livro e o filme “A Cor Púrpura”, de Alice Walker, a Whoopi Goldberg, a Whitney Houston, Lauryn Hill, as Destiny ‘s Child e tantas outras figuras também me influenciaram. A música esteve sempre salvaguardada, pois os meus pais ouviam maioritariamente música africana em cassete e CD. A rádio também não era o lugar mais inclusivo.

Facilmente se desenvolve a sensação de não pertença, de não encaixar em lado nenhum?

A sensação de não pertencer não é algo que se desenvolve facilmente. É algo que nos é imposto desde tenra idade pelo sistema capitalista, patriarcal e racista em que vivemos. A nomeação de alguém como “o outro” cria um desconforto fora e dentro da nossa primeira casa: corpo, a nossa pele. De igual modo, muito dificilmente se recupera dessa opressão e discriminação constantes. Mas recupera-se. Vai-se recuperando.

Recuso ser refém das circunstâncias. Há fases e há esperança. Como digo num poema, ‘só a nossa vida pode mudar a nossa vida’

Seremos sempre o nosso corpo e as nossas circunstâncias, para o bem e para o mal. O que é que isso fez por si?

Eu penso que somos sempre o nosso corpo, ele tem memória e é o que acolhe o nosso pensamento, a nossa alma. É o nosso suporte primordial e pode ser que passemos a vida toda a tentar fazer as pazes com ele. Que seja. Temo-nos sempre a nós e devemos honrar a nossa vida e a nossa presença aqui, por mais difícil que seja. Quanto às circunstâncias, recuso ser refém delas. Há fases e há esperança. Como digo num poema, “só a nossa vida pode mudar a nossa vida”.

Tem um outro poema seu que diz: “Nada as fará desaparecer / por isso chora o que quiseres / sobre as tuas cicatrizes”. O racismo deixa feridas profundas difíceis de cicatrizar?

Esse poema não foi necessariamente escrito a pensar em racismo. Há feridas abertas, mas também há muitas cicatrizes saradas. Eu acredito na intencionalidade, num propósito. Tenho orgulho e gosto de ser como sou, de ter vindo de onde vim – geografias e ancestrais. Todas as pessoas vão tendo de lidar consigo mesmas e com as pressões, regras e questões sociais ao longo da vida. É preciso continuar a trabalhar e a lutar, preservando-se no processo. Cada pessoa deve encontrar a sua forma de viver plenamente e de estar alinhada com a sua narrativa, de torná-la igualmente inviolável e inefável.

Foto: Filipe Ferreira

Acredita que estamos a dar os passos certos na erradicação dos preconceitos?

Quem é esse nós? Os resultados dependerão sempre de quem se responsabiliza, de quem abdica do seu privilégio, de quem se auto-educa, de quem compreende que é igualmente parte do problema e da solução. Há passos a ser dados em vários níveis, macro e micro, e todos eles contribuem para o evoluir da nossa sociedade. Mas ainda está muito por fazer, pois cada país tem a sua história e está num lugar diferente desse percurso de erradicação de preconceitos. Em Portugal temos de agir mais e burocratizar menos, temos de aceitar os factos e reparar o futuro.

As palavras têm muito poder e o racismo drena quem sobrevive a ele, impede-nos de viver, obriga-nos a aguentar. Já não temos de aguentar. A nossa missão passa agora pelo usufruto da nossa valiosa vida. Eles – os racistas – que lutem.

Porque é que a diferença parece assustar tanto?

A diferença só assusta quando ela espelha os nossos maiores receios em relação a nós mesmos. A maioria das pessoas não se aceita, como vai aceitar as outras? Basta ver como lidamos com quem é imigrante, quem envelhece, quem tem doenças do foro mental, e muitos mais casos. Contudo, eu não simplificaria as coisas dessa forma. A diferença vem sendo tecida ao longo de séculos. Ela serve sempre a alguém. Tem a ver com dinâmicas de capitalização e de subalternização e não com uma questão pessoal, até porque umas opressões motivam outras e toda a gente é afetada, para o bem e para o mal. É mesmo uma questão sistémica e institucional.

O pior inimigo do racismo é o silêncio?

Audre Lorde disse que o silêncio não nos protegerá. É preciso falar, ocupar o lugar de fala, mas também é preciso que sejam outras pessoas a falar agora. Porque até do silêncio existe um aproveitamento. As pessoas oprimidas não precisam que alguém fale por elas. Mas também não lhes cabe a constante educação do resto da sociedade. É preciso que as pessoas privilegiadas e em posições de poder denunciem, eduquem, ajam, mobilizem a mudança dentro das suas próprias comunidades. Não podem fugir à responsabilidade usando o lugar de cala como escudo. As palavras têm muito poder e o racismo drena quem sobrevive a ele, impede-nos de viver, obriga-nos a aguentar. Já não temos de aguentar. A nossa missão passa agora pelo usufruto da nossa valiosa vida. Eles – os racistas – que lutem.

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