Foto: João Lemos

Foi há cerca de uns 3 anos que uma reportagem na televisão me chamou a atenção para uma mulher portuguesa que tinha aderido ao minimalismo e que vivia numa casa quase sem móveis. Na mão segurava um frasco que continha o lixo produzido ao longo de um ano. O meu queixo caiu, ‘como era possível?’, perguntava a mim própria, olhando para o meu saco cheio de plásticos de uma semana que estava no ecoponto lá de casa. E isto depois de um esforço familiar para comprar algumas coisas a granel e trocar sacos de plástico pelos de pano. Um frasco… um frasco! Aquela mulher era Ana Milhazes, a embaixadora do movimento Lixo Zero em Portugal, e que vamos dar a conhecer a sua história.

“Lembro-me de, aos 6-7 anos, andar a apanhar lixo com os meus vizinhos para podermos jogar futebol à vontade.”

Pequena ambientalista

São 38 anos de uma vida muito cheia de estórias, feitos, conquistas, de alguns baixos e muitos altos, e que começou na Póvoa de Varzim, em 1984. Neta de gente ligada ao mar e ao campo, Ana cresceu na cidade, mas tinha uma ligação muito especial com a aldeia dos avós que visitava quase todos os fins de semana. Estar ali significava plena liberdade, rodeada de animais com quem adorava brincar. “Tornei-me vegetariana quando estava na faculdade, mas já em pequena recusava-me a comer carne de certos animais, como a de coelho. Aliás, se soubesse que existiam pessoas que não comiam carne tinha pedido à minha mãe para ser vegetariana.”
Ainda que tenha vivido num ambiente urbano, na zona onde vivia com os pais as brincadeiras na rua eram permitidas, andar de bicicleta e jogos de futebol eram as suas favoritas. Havia um grande problema, o lixo na rua às vezes não deixava que as 4 linhas estivessem bem visíveis. E para isso Ana lembra-se de, aos 6-7 anos, convencer os vizinhos a ajudar a apanhá-lo. Isto quase 30 anos antes de haver o movimento Lixo Zero Portugal, do qual é o rosto mais visível.

Há vida além do trabalho

Apesar da questão do ambiente estar sempre no seu quotidiano desde muito cedo – fazia separação do lixo e reciclagem e incentivava família e amigos a fazer o mesmo –, na sua adolescência e juventude o seu ativismo era mais direcionado a questões relacionadas com o mundo escolar, com as propinas. No futuro, via-se a ser inspetora da Polícia Judiciária e por isso, quando foi a hora de escolher uma licenciatura, não teve dúvidas, optou por Sociologia, “sabia que nem sempre abriam concursos para entrar naquelas carreiras, por isso tinha de me salvaguardar e seguir um curso abrangente, e ainda bem que o fiz porque adorei. O problema foi depois, arranjar emprego na área, e acabei por fazer uma formação de formadores. Sempre gostei de falar em público e já em miúda tinha a ‘panca’ de ser professora. Mais tarde surgiu a hipótese de formação numa empresa de informática portuguesa e foi assim que comecei a trabalhar no campo das tecnologias da informação, em controlo de qualidade de software e depois em gestão de projetos. Logo na primeira empresa onde estive, de 2008 a 2011, conquistei muito. Tinha um bom emprego, com boas perspetivas de progressão na carreira, comprei uma casa ao pé da praia, adorava o meu trabalho, os meus colegas, tinha tudo para ser feliz, mas chegava a casa no final do dia, cansada, e pensava ‘caramba, vai-se repetir tudo amanhã’. Senti que a vida não podia ser só aquilo, que faltava qualquer coisa e achei que fosse falta de organização porque tinha pouco tempo para mim”. Foi quando começou a pesquisar na net informação para se organizar melhor que descobriu um blog sobre minimalismo.

Essencial vs excesso

Ao lado do computador onde fazia as buscas estava a lista, longa, de caixas e prateleiras que Ana achava essenciais para se organizar melhor, quando deu de caras com uma frase que nunca mais lhe saiu da cabeça: ‘Não faz sentido comprarmos coisas para organizarmos coisas que temos em casa que não usamos.’ “Como é que não tinha pensado nisso antes!? O meu problema não era falta de organização, organizada era eu. O que fazia sentido era livrar-me de coisas. E claro que por ter consciência ambiental aquilo que fiz foi contactar familiares, amigos e associações e lá fui distribuindo o que achava estar a mais. Era sobretudo roupa e sapatos, pois tinha-me tornado, entretanto, altamente viciada em compras. Apercebi-me imediatamente dos benefícios de viver com menos e fui passando esse conceito para outras áreas da minha casa e vida.” Em 2012, surge a necessidade de partilhar os benefícios do minimalismo com outras pessoas e decide criar um blog, o Ana Go Slowly, nome inspirado na citação do monge budista Thich Nhat Hanh, ‘Smile, Breathe and Go Slowly’ (Sorria, Respire, e Vá Devagar). Ao destralhar fisicamente – deixar de fazer compras inúteis, dar o que não precisava, não aceitar os brindes das inúmeras conferências em que participava – Ana percebeu que havia benefícios também no destralhar psicológico, “deixei de ir a eventos só para fazer o frete e apercebi-me que ia ficando com mais tempo livre. A juntar a isto, a descoberta do ioga em 2014 também me ajudou imenso a desacelerar. Fiz uma formação e comecei a dar aulas”.

Lixo zero Portugal

As passagens de ano são sempre momentos em que tomamos consciência daquilo que não está bem na nossa vida e do que desejamos mudar. No início de 2016, Ana, ao olhar para os seus caixotes do lixo, pensou, ‘como é que uma pessoa tão preocupada com o ambiente ainda faz este lixo todo?’. Foi o suficiente para começar a pesquisar formas de produzir menos lixo e encontrou o blog de Bea Johnson, conhecida por ter iniciado o movimento ‘zero waste home’ (casa desperdício zero). “Comprei o e-book dela e identifiquei-me logo com o seu estilo de vida minimalista. Com dois filhos, um marido e um cão, Bea tinha conseguido produzir um frasco de lixo num ano. Seria aquele o meu desafio. Muito do trabalho já o vinha fazendo desde 2011, eliminando tralha, agora tinha de reduzir as embalagens de plástico e o indiferenciado. É nesta altura que nasce o movimento Lixo Zero Portugal e criei um grupo no Facebook, ao qual cada vez mais pessoas aderiram.”

“Fui funcionando até ao dia em que o meu corpo disse ‘basta’, e por uns instantes deixei de ver enquanto conduzia.”

Ponto de viragem

Portanto, vamos lá ver, Ana trabalhava 12-14h diárias no seu emprego, dava aulas de ioga, escrevia no blog Ana Go Slowly e agora tinha o Movimento Lixo Zero Portugal. Não é de espantar que a meio de 2017 comece a sentir cansaço extremo e ataques de ansiedade. Estava numa empresa nova há um ano, a terminar de gerir mais um projeto e o seu corpo pedia descanso, mas foi arrastando a situação até que um dia, ao conduzir na Ponte da Arrábida, deixou de ver por uns instantes. Assim que recupera a visão, decide que aquele é o seu limite e o seu último dia de trabalho. “Eu estava a adiar aquele dia e a vida deu-me um empurrãozinho. Falei com o meu responsável, disse o que se tinha passado e que ia ao médico. É claro que fiquei logo de baixa com um diagnóstico de burn out. Fui para casa e comecei a ter ataques de pânico, nem conseguia olhar para o telefone ou computador. Também não me dei bem com a medicação e o meu quadro evoluiu para uma depressão, chorava todos os dias só de pensar em voltar ao trabalho. Aí percebi que tinha mesmo de me despedir, não fazia sentido ficar de baixa por mais tempo, que por mais que o meu trabalho me desse dinheiro e reconhecimento, estava a dar cabo da minha saúde física e mental. Foi um ponto de viragem da minha vida porque também me separei nessa altura. Os meus familiares não perceberam a minha decisão, acho que receavam que me viesse a arrepender porque tinha um bom emprego. É claro que me preocupava, como ia pagar as contas, se os meus projetos me ajudariam a fazê-lo, mas nos primeiros tempos ia conseguir aguentar-me porque o meu estilo de vida mais despojado desde 2011 tinha-me permitido juntar bastante dinheiro, o que só me ajudou a tomar a decisão final de me desvincular.”

Uma outra vida

Deixou o trabalho, mudou de casa, disse adeus a mais alguns objetos, e começou a dedicar-se totalmente aos projetos pessoais. Estava feliz. A Ana da infância, que se sentia bem no campo, ao ar livre, a verdadeira Ana, foi ocupando o seu espaço, e aquilo que era um hobbie passou a ser o seu trabalho de sonho, conquistando cada vez mais gente para o seu ‘lado’, para uma vida mais livre do que é supérfluo e com menos lixo. No início de 2020 lançou o livro ‘Vida Lixo Zero’, para chegar a mais pessoas. “Quis que fosse muito prático, que contasse histórias, as minhas experiências, e que fosse um manual de ajuda para diminuirmos o nosso desperdício, tendo consciência de que as coisas levam o seu tempo, mas mesmo que façamos só um pouquinho, é sempre melhor que nada.” Lembra-se de eu ter mencionado a reportagem onde Ana mostra o frasco de lixo? Isso foi em 2019, hoje continua com o mesmo frasco mas diz que está mais cheio. Não só porque é menos radical mas porque em fevereiro de 2020 foi viver com o novo companheiro e os seus dois filhos para o Alentejo. “Com crianças é mais difícil, mas não é impossível. Neste momento tenho a casa mais cheia e de vez em quando há brinquedos espalhados, mas os miúdos são fantásticos e muito arrumados, sabem que não devem entrar no meu escritório, ali é o meu lugar sagrado. Como aqui não há lojas a granel, continuo a levar os meus frascos e sacos de pano para que não me dêem plásticos. Ao princípio ficaram espantados, mas agora até me elogiam. É semeando estas ideias que elas crescem. Acredito que esta pandemia está a ter um impacto nas pessoas ao nível da consciência ambiental. Também nos virámos mais para dentro, para as nossas casas, vimos o que era essencial para nós, que nos sentíamos melhor a passear ao ar livre que enfiados nos centros comerciais.” Que do mau consigamos sair melhores.

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