Fotos de João Lima, com styling de Patrícia Pinto

A luz entra por grandes janelões com vista para o frenesim de Lisboa que faz eco na cozinha cedo pela manhã. Os aromas rapidamente se imiscuem, os que já se fazem sentir no Zunzum Gastrobar e os que me chegam da Maia, mais precisamente de Silva Escura, numa onda nostálgica que empurra as palavras para uma infância marcante. “Era uma aldeia de terra batida onde crescíamos da forma mais livre possível, sem muita noção do mundo. Estávamos ali de certa forma fechados na nossa bolha de Natureza, de cozinha simples, daquilo que a terra dava e pouco mais. Cresci dessa forma sem qualquer tipo de maldade, éramos completamente livres: vivíamos os dias de brincadeiras, de ajudar os mais crescidos e de ir à escola. Era uma aldeia cheia de alegria. Desenvolvíamos muito o cheiro porque estávamos sempre atentos ao que se passava, não tínhamos muita distração. Não havia telemóveis e a televisão só se ligava à refeição.”

A “miúda simples” com que Marlene Vieira logo se apresenta nesta entrevista parece incompatível com a comida que serve no restaurante de cozinha de autor com o seu nome que abriu mesmo aqui ao lado – entre os best sellers, o ravioli de rábano com gamba violeta e a tarte de percebes das Berlengas. Não nos deixemos enganar pelo empratamento sofisticado, os sabores são honestos, sem artifícios para enganar o paladar. É aliás a tendência gastronómica com que mais se identifica. “A ideia é sentirmos os sabores todos, mascarar menos e olhar para o produto e perceber como podemos valorizá-lo.” Marlene é, assim, uma espécie de garimpeira dos produtos portugueses, que trata como se fossem metais preciosos. A sua mais recente descoberta foi o hibisco – “não sabia que havia já aqui em Portugal” – , que integrou o menu no verão, numa cozinha ainda predominantemente nortenha mas que tende a ganhar leveza e frescura à medida que ruma ao sul. “Gostava de explorar mais o Algarve, pela sua diversidade, há sempre qualquer coisa que me puxa para lá.”

Um novo mundo

Marlene é ela própria um produto de todo um percurso até aqui, numa receita que valoriza as suas vivências – com toda a doçura e acidez de que é feita qualquer alquimia de sabores. Não faltam a broa de milho feita pela avó e os tremoços que com ela vendia porta à porta e na Feira de Santana, numa narrativa gastronómica que começa nas visitas de sábado que, aos nove anos, Marlene já fazia aos restaurantes fornecidos pelos talhos dos pais.

No ponto de cozedura perfeito regozija-se a chef consagrada que em menina ficava de castigo por não comer. “Só gostava de coisas cruas, diretamente da horta, se calhar porque cozinhavam demasiado os alimentos.” A culinária foi uma descoberta e aprendizagem, como quem conquista tanto quanto é conquistado. Foi em solo feminino, e numa bonança invulgar que se destacava das cozinhas regionais, mais tempestuosas, que descobriu um novo mundo. Tinha apenas 12 anos. “Entrei num restaurante completamente diferente, de cozinha clássica, francesa. Na minha cabeça era estranho – ‘como é que numa terra destas há um lugar assim?!’ Era uma mulher jovem – normalmente eram mulheres mais velhas, com má cara e numa azáfama muito grande – e o ambiente era muito sereno, com ela a comandar de uma forma muito suave e delicada. Era uma espécie de caos organizado, não a balbúrdia que eu costumava ver nas cozinhas mais tradicionais.”

Apaixonou-se e declarou aos pais a intenção de por lá ficar a ajudar quando a escola desse tréguas. “A minha mãe disse que eu era maluca, que nem sequer chegava às bancadas, mas acabou por ceder com a convicção de que ao fim de uma semana eu desistiria.” A profecia materna não só não se cumpriu como Marlene passou a dormir numa cama improvisada na sala de estar da chef Isabel (grande impulsionadora da sua carreira), que morava por cima do restaurante, quando os pais pronunciaram a insustentabilidade das boleias diárias. Terminadas as férias de verão, continuou aos sábados a estudar a doutrina culinária – e não só. “Fazia tudo o que fosse preciso: lavar a louça, descascar batatas, limpar as casas de banho, servir às mesas…” Foi uma espécie de mise en place que determinaria o sucesso de uma carreira que não mais repousou.

Sabores portugueses

Cada elemento que Marlene coloca no prato conta um segredo, mas também há lugar para saborosas contradições, ou não tivesse a chef ido para a América para aprender o que na cozinha era mais português. “A nossa formação era muito virada para a cozinha clássica, como a francesa. Fui para um restaurante português de luxo em Manhattan, chamado Alfama, e foi uma descoberta inacreditável. Nova Iorque foi a loucura total – numa altura muito difícil, logo a seguir ao 11 de setembro. A cidade estava de pernas para o ar, cada vez que se ouvia um barulho as pessoas gritavam, atiravam-se para o chão a achar que era uma bomba. Eu não estava minimamente preparada. Foi uma mudança muito brusca, passei noites sem dormir, era muita adrenalina e criou-me muita ansiedade e depois de dois anos regressei.”

Regressou quando Portugal descobriu o que esta chef já despachara na bagagem. “A comida portuguesa começava a ganhar força e a cabidela de pato que, algum tempo depois, retirou da cartola para apresentar no Chef Cozinheiro do Ano, já trazia bem estudadas as lições em cozinha molecular que entretanto tivera com Vítor Claro, num caminho que se tornava cada vez mais nítido. “Não ganhei, mas ficou marcado pela cabidela pois não se fazia cozinha portuguesa nesses concursos.” Surgiu então o convite para ir trabalhar com Luís Baena, um dos jurados do concurso. “Aprendi com todos os chefs com que trabalhei, mas o Baena marcou-me pela reviravolta que representou na minha carreira. Ele fazia uma mistura de cozinha portuguesa com cozinha molecular, trabalhava os produtos portugueses com técnicas do mundo. Viajei muito através dos seus olhos, à Ásia, América Latina, Europa do Norte… Houve muito estudo, muita experiência, muitos dos pratos que tenho hoje foram experiências feitas naquele restaurante. Nos hotéis não tínhamos esse tempo para experimentar, era tudo muito esquematizado. Passámos de fazer o que cliente queria para o que nós queríamos fazer para o cliente.”

Pesadelo na cozinha?

Ainda não são 11h e quem trabalha no Zunzum já almoça. Da cozinha, não se ouve muito mais do que o tilintar das panelas. Questiono-me se a verdadeira ação, com contornos cinematográficos, chegará com a casa aberta e os pedidos a chegar em catadupa. Marlene arrasa com qualquer expectativa que eu tinha de novela culinária. “Essa coisa dos berros existe mas na televisão é muito para o show off. Há muita exigência, rigor e disciplina, mas hoje existe uma abertura que antes não havia, há uma maior tolerância para o erro e do erro até surgem coisas novas. Quando comecei era assim, ponto final. Tive alguns problemas porque questionava e era curiosa.”

Não contem por isso com Marlene para encenar quaisquer pesadelos na cozinha. “Quanto mais stresse, mais calma eu sou. Há quem diga que sou viciada em stresse, preciso de adrenalina para manter a calma. Não sei como explicar isso, mas é o que é.” (risos)

Nas salas dos restaurantes o ambiente também mudou. Marlene recorda os tempos do Avenue, experiência que a marcou particularmente – foi a primeira cozinha que liderou completamente sozinha – e a que dá continuidade no que faz agora no Marlene. “Apesar do enorme sucesso, tivemos episódios de clientes muito mal-educados, de nos atirarem o prato a dizer que era uma porcaria. Na Avenida da Liberdade era difícil. Em Lisboa havia muita esta coisa de ‘eu pago, posso fazer o que quiser’. Eram pessoas que tinham empregados e estavam habituadas a tratá-los como bem entendiam, porque eram pessoas humildes e precisavam de trabalhar. Eu também precisava de pagar as minhas contas, mas havia coisas que não conseguia levar para casa.”

Conforto vs competição

Descartado o inferno, Marlene também não nos promete o céu. A competição é real e várias vezes foi servida à menina de aldeia. “O mais difícil foi perceber a maldade no grupo. Ainda sou um pouco ingénua, estou sempre à espera do melhor das pessoas e custa-me acreditar que alguém pode ter essa malícia.” E embora as mulheres fossem poucas, a solidariedade feminina não era nessa altura um prato forte nas cozinhas. “Sempre fui protetora das mulheres – e não só –, mas elas não me protegiam, por inveja, ciúme, não percebiam por que é que de repente eu estava a liderar equipas.”

Por um lado, algumas mulheres contribuíam para este ambiente altamente competitivo, e, por outro, era este mesmo contexto hostil que as afastava das cozinhas profissionais. “Talvez durante muito anos as mulheres não tiveram interesse por esta área porque cozinhar era uma obrigação imposta pela sociedade. Além disso, há uma razão para haver tantas de nós na cozinha regional e tão poucas na cozinha gastronómica: “As mulheres não se reviam, porque a cozinha era para elas um mundo de conforto e não de competição. Elas gostam da tradição, da emoção e de estar muito perto das pessoas, e no fine dining havia um afastamento.

Fine dining, Marlene acaba de decidir abolir o termo do seu léxico. Quer distanciar-se do conceito que não tem lugar à mesa das suas casas. Não abdica da liberdade que tinha em criança e aprendeu a valorizar. “No Marlene fazemos uma comida experimental que normalmente está dentro de espaços muito clássicos, onde as pessoas mal se podem mexer ou falar. A ideia é que o cliente possa ter toda a qualidade mas que se possa levantar, rir e que não esteja preocupado com o que vai vestir.”

Doçuras e travessuras

Chegamos à sobremesa deste menu feito de palavras quando na sala do Zunzum já o staff bebeu café. O momento é doce, mas o tom humoristicamente amargo. “Uma chef estar casada com um chef é a coisa mais difícil de todas.” (risos) Refere-se a João Sá, chef do restaurante Sála que conheceu aos 24 anos. “Quando estamos juntos só falamos de comida, é uma canseira.” (risos) Isabel é a prova de que a conversa não se fica pela cozinha, embora aos 7 anos a filha veja nela uma quase fatalidade. “Já diz ‘não consigo decidir o que vou fazer quando for crescida, mas provavelmente vou ser cozinheira, não é mãe?’”

Com a família, todo o turismo é gastronómico e já tem a mira apontada para o Alchemist, em Copenhaga. Mas ainda há muito para conhecer por cá. “Em Lisboa, há uma série de restaurantes novos com chefs mulheres que vêm de fora, mas que cozinham com produto português. Vêm com outra forma de trabalhar e pode ser interessante.”

Artigo originalmente publicado na revista ACTIVA de Agosto de 2022

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