Fotos: João Lima

Dou com uma Guida em fuga com um saco de lixo monstruoso. A minha entrevistada tem um ar amigável. Sorri e volta para trás, com os despojos de vários dias de trabalho. Abre a porta da oficina e deixa-me entrar, resgatando-me à manhã fria e entregando-me a uma barafunda de móveis desalinhados como doentes que se amontoam na sala de espera de um hospital. Há cadeiras coxas e sem braços que aguardam pacientemente a cura. Monstros que fazem fila para serem lixados. Divirto-me a pensar como as palavras podem ser traiçoeiras: aqui, lixar é empregue no sentido mais literal e positivo do termo. O trabalho da marceneira Guida é esse mesmo, transformar Fionas em princesas sem que percam identidade e alma. Como Boo no famoso filme de animação ‘Monstros e Companhia’, Guida nada teme perante os ‘monstros’ que os clientes lhe confiam. Muito pelo contrário, tem o poder de lhes devolver a glória de outros tempos.

Guida, 41 anos, cumpre agora um sonho que até o concretizar não sabia que tinha. O seu discurso é reconfortante, afinal a maioria de nós não tem uma espécie de Guia Michelin na cabeça a dizer qual o destino e o melhor itinerário para o alcançar com a mínima margem de erro. “Temos tantas competências que não conseguimos explorá-las todas durante uma vida inteira de trabalho, é uma pena não podermos fazer cinco anos disto e cinco anos daquilo.”


ROTA INDEFINIDA

O trajeto de Guida é um ziguezaguear semelhante ao de tantos nós. Quis ser jornalista, mas quando chegou a altura de escolher, o futuro não se lhe estendeu a passadeira vermelha. Não seguiu a rota certa de marcações que costuma traçar antes de começar um novo projeto. “Não era daquelas pessoas que soubesse de imediato o que é que queria. Sabia que geria muito bem a parte linguística e de literatura, adorava ler, escrevia bem e havia essa apetência natural – nunca seria médica ou economista.” Acabou por optar por Comunicação e Cultura. “Lembro-me de a minha mãe me pressionar a dizer que tinha de escolher, que não ia perder um ano… Mas eu devia tê-lo perdido, a pensar no que queria, e se calhar teria feito um percurso completamente diferente, o que não invalidaria estar no ponto onde estou.”

E é alto o ponto onde se encontra atualmente Guida Costa Santos. A sua Oficina já tem mais de 10 anos, altura em que decidiu cortar com o seu passado profissional numa agência de comunicação e marketing, com projetos e clientes interessantes mas com demasiado prejuízo para a sua vida pessoal e nesta altura já pensava em ter filhos. “A grande questão era não só a densidade do trabalho mas a velocidade a que as coisas aconteciam. O telefone tocava tanto que já não havia toque que não me irritasse.” Mas, mais uma vez, Guida tinha mais dúvidas que certezas quanto ao projeto de restaurar a sua carreira. “Foi um pouco por acaso. Já tinha transformado móveis, na minha casa só o sofá e uma mesa é que eram comprados. Todos os outros eram recuperados, os meus avós tinham uma quinta e imensa mobília e quando se mudaram para a cidade recuperei imensas coisas.” Passou assim da prática à teoria inscrevendo-se num curso pós-laboral da Fundação Espírito Santo, que aliava a marcenaria à conservação e restauro.

Guida tem aquela energia dos pioneiros e não é por acaso que foi uma das primeiras mulheres a ganhar a vida nesta área. (Também não é por acaso que o corretor ortográfico não aceite a versão feminina da profissão.) “Dou-me com os marceneiros mais velhos e são todos homens, isso é um constrangimento. Por outro lado, dá-nos uma maior vontade de singrar.” Tem aquele espírito de aventura que é necessário para tomar o caminho menos percorrido. “A minha avó, na primeira vez que me viu de fato-macaco disse logo que não fosse almoçar com ela assim vestida. E a minha mãe dizia que eu estava louca e quando falava com outras pessoas sobre o assunto insistia em dizer que eu estava desempregada da minha área… Mas fui eu que decidi desempregar-me, para mudar de área!”

Sem guião num argumento com final desconhecido, não nega que foi preciso alguma coragem, ainda que insista em amortecê-la com a rede de uma situação financeira estável garantida pelo marido, Ricardo. Ainda agora não faz tanto quanto ganhava na velha profissão e o aspeto monetário é uma das poucas desvantagens que Guida admite em relação ao negócio. Mas a sua principal tristeza é a que partilha com todos os que trabalham neste tipo de ofício: a falta de valorização do trabalho manual. “É difícil explicar às pessoas que investimos imenso em tempo e materiais. Quando apresento os orçamentos, às vezes respondem-me que, para isso, vão comprar um móvel novo. Antigamente ainda dizia ‘não faça isso’, mas já desisti. Não é hipocrisia, é simplesmente render-me às evidências.”


QUESTÃO DE TEMPO

O seu sucesso, esse, não foi feito a martelo. Fala de trabalho e paixão. E também de sorte e de como é preciso trabalhar para ela. “Não nos cai no colo. Recebo muitos mails a perguntar como é que eu consegui. Na realidade, eu não sei bem responder, lembro-me de estar numa primeira oficina, em Entrecampos, muito pequena e sem janelas, e de ficar lá fechada 4 ou 5 meses, a recuperar móveis para criar uma espécie de portfólio. Criei um site na Wix com tudo aquilo que tinha feito. Foi uma parte difícil, porque não tinha feedback. Na altura não havia Facebook nem Instagram.”

O negócio nasceu já Guida esperava o primeiro filho, e muitas sestas Vicente (e mais tarde também Bartolomeu) dormiu na oficina embalado pelo novo sonho da mãe. O tempo, esse “bem mais precioso”, que enfatiza, demorando-se num sorriso rasgado, como a grande vantagem de ter o seu negócio. Mas há mais. “A parte boa do trabalho manual é que limpa a cabeça, é cansativo mas não de uma maneira stressante.” Fisicamente é exigente, mas “não assim tão avassalador”. Nada que umas rodas debaixo de um móvel mais pesado não resolvam. Para evitar lesões nas articulações, trabalha-se a forma no ginásio. “Passamos muitas horas em pé e fazemos muitos movimentos repetitivos – 80% das peças são lixadas manualmente, por exemplo.” Movimentos repetitivos num trabalho que nem por isso se repete, o que é, para Guida, muito gratificante. “Os móveis são como as pessoas, os problemas parecem iguais, mas depois quando vamos à volta deles as coisas não se resolvem da mesma maneira. As técnicas não se adequam a todas as peças. Para cada uma arranjamos uma fórmula que funciona e é irreplicável.”

Embora todos os trabalhos sejam únicos, Guida não tem dificuldade em destacar três: um aparador tipo escandinavo que era da avó (“lembro-me de ele já estar decadente quando eu estava a crescer e de torná-lo lindo novamente!”); um aparador com puxadores originais e com um tecido americano antigo, às flores, que comprou na net (“foi o primeiro que vendi, por 400 euros, numa feira, adorei que tivesse sido um homem a comprá-lo”); e uma sala cuja proprietária lhe deu carta branca para decorar com móveis recuperados. “Raramente acontece”, sublinha Guida em relação a este último projeto. Raramente a deixam “extravasar” toda a criatividade, os clientes já chegam com ideias bastantes fechadas. “É difícil conseguirmos convencê-los a não pintar de branco, porque um móvel antigo pintado de branco é quase um crime… Mais vale dar-lhe um tom pastel, um bege…”


Terminada a entrevista, já Ana vestia o fato de trabalho. Lembro-me da avó de Guida. “Morreu com 95 anos e morreu feliz… Nunca pude ir almoçar com ela de fato-macaco. Mas as nossas avós gostam de nos ver bem. Quando as pessoas estão felizes, transmitem isso e só pode ser positivo, só pode dar certo.”


Texto originalmente publicado na revista ACTIVA de fevereiro de 2019


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