Quando tomei conhecimento deste projeto, confesso que no primeiro segundo em que ouvi o nome Manicómio associado a artistas com doença mental diagnosticada estranhei, mas depois percebi que é mesmo isso que se pretende, sair do politicamente correto, retirar àquela palavra a conotação pesada e negativa, e brincar com ironia. Convenhamos que se chamasse ‘Amigos das Artes’, passávamos por ele e nem dávamos conta. “Este projeto é uma pedrada no charco, no preconceito e nas ideias-feitas em relação às pessoas com doença mental, quer normalizar, vincular a ideia de que essas pessoas podem acrescentar valor”, diz Sandro Resende, cofundador deste projeto que nasceu há 4 anos. “Estou há 23 anos à frente das Artes Plásticas do Hospital Júlio de Matos, comecei tudo o quanto era arte por lá, teatro, exposições, concertos… Comecei a trabalhar assim como uma ferramenta ao serviço dos artistas do Hospital Júlio de Matos e percebi que eles tinham muita qualidade e, acima de tudo, algo que não se consegue fabricar, a autenticidade. De facto, havia ali pessoas que faziam coisas incríveis, só que para ir mais além deparei-me com a máquina enorme que é um hospital, e as burocracias não permitem que se vá mais longe com estas pessoas. Foi por isso que abri o Manicómio, alguns anos depois (risos), para complementar o que tinha feito no Hospital Júlio de Matos, com regras muito mais soltas. Por exemplo, aqui não têm horários, vêm quando querem porque têm a chave do espaço. Mas, atenção, isto não é uma terapia, isto é um espaço de trabalho, é um atelier de artistas.”
“O Manicómio começou por ser um projeto de arte com pessoas com experiência de doença mental, mas neste momento somos mais que isso, trabalhamos também a parte do ativismo e dos direitos humanos, trabalhamos com a OMS, com a ONU, com empresas como a Arcádia, a Vodafone, CUF, SMEG… Estamos aqui para trabalhar e trabalhar bem. Sou muito exigente com os artistas que estão connosco, e neste momento são 15. Esta exigência que temos aqui é também uma forma de combate à saúde mental e ao estigma que as pessoas com doença mental sofrem. Quer estejam a trabalhar para empresas, quer estejam a trabalhar para as exposições que fazemos com alguma frequência, eu não tenho, nem posso ter, qualquer problema em dizer que um determinado trabalho não é bom e que não tem qualidade. Sou sempre o mais sincero possível, faço crítica construtiva, como é óbvio, e nunca houve problema. Eles sabem que se o faço é para eles não ficarem malvistos, assim como o Manicómio e o estigma da saúde mental. Não há facilitismo ou paternalismo, se assim fosse não estávamos a fazer a nova coleção da SMEG ou não trabalhávamos com a Viúva Lamego… Só trabalhamos com as marcas se lhes acrescentarmos valor, não é caridade, não se trata de uma exposição de ‘coitadinhos’. Ao princípio, as marcas vinham ter connosco no formato de responsabilidade social, e o meu trabalho no Manicómio é precisamente dizer às marcas ‘olhe, isso podem fazer com outras associações, connosco isso não faz sentido, as pessoas que aqui trabalham têm uma doença mental, há quem tenha depressão, quem seja bipolar ou tenha esquizofrenia, mas são pessoas iguais a nós, tomam a sua medicação como tomam as pessoas que têm doença cardíaca ou diabetes.” O grande problema para Sandro é não poder aceitar mais pessoas que querem pertencer ao Manicómio, e dizer-lhes ‘não’ é muito difícil, “ficam muito chateadas mesmo, mas neste momento não temos condições para as ter”.
Inspiração 360º
Uma das artistas plásticas que conseguiu entrar no projeto foi Micaela Fikoff e está no Manicómio há pouco mais de dois anos. Fui ter com ela àquele espaço para conversarmos à vontade e conhecer o ambiente de trabalho. Quando pensamos na palavra manicómio, o que nos vem à cabeça é um lugar lúgubre, cinzentão, pesado, mas este está nos antípodas desta descrição. Por fora ninguém adivinha o que está lá dentro. As paredes perfeitamente caiadas de branco e o grande portão cinzento são bem bonitos, mas o interior supera quaisquer expetativas. Aquilo que parecia ser uma casa normal, quando se abre o portão deparamo-nos com um gigante armazém cheio de luz, em open space, com um pé-direito enorme, teto com travejamento em madeira e uma vista maravilhosa sobre o rio Tejo. É difícil fixar o olhar porque há muito para descobrir e, no entanto, tudo parece estar no seu devido lugar. A cor dos sofás e cadeiras chama a atenção, assim como as mesas de trabalho enormes onde se sentam os artistas, e muita arte, nas paredes, sobre as secretárias. Há quem esteja concentrado no seu trabalho e outros que trocam ideias, mas não há o ruído característico do open space. Um ambiente vibrante e bem positivo. Desço as escadas à procura de um rosto familiar e de repente vejo um braço lá no fundo a acenar-me, acelero o passo mas sempre a tentar observar as peças de arte pelas quais vou passando. Definitivamente, o que ali vejo não é ‘ocupação de tempos livres’, é ‘the real deal’.
Sem preconceito
Micaela põe-me logo à vontade e sentamo-nos nuns sofás supercoloridos enquanto me conta a sua história. Nasceu no Brasil, veio para Portugal com quatro meses e ficou aqui até aos 10 anos, tendo depois regressado ao país natal. Desde pequena que tem um lado artístico muito vincado, “talvez por meu pai ser arquiteto e minha mãe também ter dons artísticos. Na hora de escolher faculdade voltei para a Europa e fiz Design Têxtil em Itália. Casei e voltei para o Brasil, mas na altura não consegui emprego na minha área, porque me tinha especializado em estamparia e nessa época o Brasil não criava nada, todos os desenhos têxteis eram copiados aqui da Europa e eu acabei entrando noutro ramo, mas a arte sempre esteve muito presente na minha vida. Fui trabalhar em eventos, que é também uma área onde há muita criatividade.” Há três anos, o seu filho decidiu estudar em Portugal e Micaela optou por vir também, até porque tinha os pais e o irmão a morar cá. “Apesar de eu estar trabalhando numa empresa onde fazia design para calçado infantil, há um tempo que vinha desejando ter uma vida mais tranquila e quando o meu filho decidiu vir para cá fazer faculdade decidi que vinha para Portugal também. Só que não foi fácil. O primeiro ano eu estava bem, mas no segundo fiquei muito mal… não é fácil a gente construir a vida do zero, apesar de ter família aqui, a cultura é diferente, me senti muito isolada e a pandemia não ajudou. Arranjei um trabalho numa agência de filmes publicitários e depois numa pequena pousada em Cascais, um lugar lindo, mas eu já não estava bem. Acho que o que não estava bem no Brasil, aqui estourou tudo… as dificuldades financeiras não ajudaram, o facto de ter deixado a minha casa no Brasil, não é fácil… Quando aceitei o trabalho na pousada eu já estava doente e tive de ser internada, apesar de não querer. É estranho, mas eu queria morrer e ao mesmo tempo tinha receio de perder o trabalho. As pessoas da pousada esperaram o mês do meu internamento e me contrataram de volta, inclusive foram visitar-me ao hospital. Tive a sorte de não sofrer qualquer tipo de preconceito. Felizmente, hoje em dia o assunto da doença mental é mais falado e é por isso que eu estou contando minha história também, para ajudar a desmistificar. Na verdade, eu tive dois episódios graves de depressão, e um em pequena mas esse passou despercebido. O primeiro mais grave foi quando me divorciei, o segundo foi este em Portugal. Aconteceram com 15 anos de intervalo. A diferença de um para outro é brutal, não só as terapias como a atitude das pessoas, mudou muito, já se fala mais nisso, não é tabu, inclusive tem pessoas conhecidas que falam abertamente, como a ginasta americana Simone Biles. Atualmente, eu estou bem, os remédios mudam a química do nosso cérebro, mas a grande virada é a terapia, muda tudo, ainda que seja um trabalho diário. É como ir ao ginásio. O facto de eu estar aqui no Manicómio a trabalhar ajuda muito porque não só eu trabalho, como puxam por mim, pela minha arte, e sei que estou com pessoas que também, como eu, têm uma doença mental. Não há aquele problema de dizer, ao mínimo sinal, ‘não estou me sentindo bem, preciso de uma consulta [psiquiátrica] e tenho-a nesse dia ou no dia a seguir.”
“Tirar arte de dentro de mim”
Micaela descobriu o projeto Manicómio na internet e mandou o seu currículo e os seus desenhos, mas por causa da pandemia a entrevista não pode ser logo marcada. “Me disseram que havia uma lista de espera e eu não criei expectativa nenhuma, nem esperei que fosse acontecer, mas aconteceu e fui aceite. Nessa altura, eu ainda estava mal, nem conseguia comunicar bem com as pessoas, jogava todos os meus trabalhos no lixo, achava que não eram bons. Agora, posso não estar a 100% ainda, mas me sinto muito bem e isso se deve ao trabalho que venho fazendo aqui. Quando tivemos de voltar para casa, por causa da pandemia, deixei de fazer os meus desenhos a guache e comecei a bordar. Nunca tinha usado o bordado como linguagem artística, mas foi um turning point, me deu muita tranquilidade. Comecei por fazer retratos, uns rostos de forma abstrata, e quando voltámos para o Manicómio mostrei ao Sandro, que ficou encantado, tanto com o direito como com o verso dos bordados. Percebemos que tinha ali uma coleção, em que cada rosto representava um sentimento (raiva, tristeza…) que toda a gente tem, mas quando estamos num processo de doença mental mais sério, a gente sente isso mais forte, daí o nome da coleção se chamar ‘Os meus Avessos’. Neste momento, estou numa fase em que só me interesso por desenhar rostos, e para a coleção seguinte eu transportei o bordado para o papel. Faço desenhos, mas com aquele traço como se fosse o pontilhado do bordado, que é o que vai estar na exposição no espaço Fidelidade no Chiado. A arte é isso, o trabalho vai levando ao seguinte e esse, por sua vez, vai levando a outro ainda. O Manicómio tem sido como uma família para mim e o Sandro conseguiu tirar uma arte de dentro de mim que eu nem sabia que existia e que estava guardada muito no fundo. Posso dizer que, atualmente, estou muito feliz e me sinto com tanta energia que até estou conseguindo conjugar o trabalho aqui com um outro como freelancer.”
Acesso geral
Nem só os artistas de mão cheia podem ter acesso a este projeto, quem goste de arte e queira aprender com os melhores tem acesso aos seus workshops. São masterclasses com os profissionais do Manicómio. “Esta não é só uma forma de dar rendimento aos artistas como ajuda as pessoas a olharem para a doença mental sem preconceito, porque ali há o professor e o aluno, não há a condição de doente. As pessoas aprendem técnicas novas de arte que as ajuda a expressarem-se. Há quem aprenda e há o artista que ensina. Eu digo-lhes muitas vezes ‘nós não somos a nossa doença, somos aquilo que fazemos”, sublinha Sandro Resende. Micaela já orientou vários workshops e adora, “há sempre alguém que diz que não tem jeito nenhum e é muito engraçado ver que sai dali com um trabalho fabuloso que não sabia que tinha dentro de si. Esta técnica do pontilhado que eu ensino, desconstrói na cabeça das pessoas a ideia de que desenha mal, as pessoas se entregam e fazem trabalhos incríveis.” Os workshops podem ser dados na própria empresa que solicita a masterclass, como no próprio espaço do Manicómio. Também ali há outro serviço que beneficia quem não é artista profissional, que são as consultas de psicologia ou psiquiatria. “Chamam-se consultas sem paredes e são para as pessoas de fora mas a um preço muito mais baixo, 35 euros. Estas consultas podem ser feitas no nosso espaço, de uma forma muito solta, ou num jardim, ou numa sala fechada. Não é de um dia para o outro, mas não têm de esperar seis meses, o máximo dois”, revela Sandro. A curto prazo contam ter consultas de terapia familiar e pedopsiquiatria também.
Arte em sua casa
Este projeto subsiste sem ajudas do Estado, mas com parcerias com empresas, com marcas, concursos, workshops, exposições. Se quiser ver obras de alguns dos artistas que trabalham na Manicómio dê um pulo até à Bienal Internacional de Arte Gaia (até dia 8 de julho), Quinta da Fiação, em Lever. Aqui poderá ver o talento de Micaela Fikoff, Cláudia R. Sampaio e Joana Ramalho. Além disso há a possibilidade de comprar “produtos nossos aqui no Manicómio, no nosso site, no Facebook ou Instagram. Há uns tempos tivemos à venda uns notebooks que foram um sucesso, vendemos todos no espaço de uma semana. Lá está, o produto era muito bom, bonito, tinha qualidade. Como disse, isto não é terapia, é arte”, remata Sandro. Um manicómio muito saudável.
A importância de criar
Nem todos somos artistas, mas todos beneficiamos da criação de algo com as mãos. A ligação mão-cérebro é muito importante e crucial para o nosso desenvolvimento como indíviduo. É por isso que é crucial que as crianças tenham contacto com materiais que possam tocar e criar sem restrições, e treinem a sua motricidade fina. Para os adultos, trabalhar o barro, pintar, tricotar, desenhar e fazer jardinagem são atividades que melhoram a nossa neuroplasticidade ao criar novas ligações entre os neurónios, assim como ajudam a libertar serotonina e endorfinas que reduzem o nível de cortisol, a hormona do stresse. Para a neurocientista Kelly Lambert, estas atividades podem inclusive reduzir o risco de depressão, se combinadas com terapia.